São Paulo, quarta-feira, 27 de setembro de 2006

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Ceder ou lutar?

PLINIO DE ARRUDA SAMPAIO

A catástrofe anunciada está à vista da população. Mas esta, golpeada por seguidas desilusões com as lideranças políticas, não reage

"FALTA-NOS A experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. Mas não ignoramos que nosso tempo histórico se acelera, e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano.
Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação."
Começo com essa citação do livro "Brasil: A Construção Interrompida", de Celso Furtado, para retomar o tema da greve na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo em uma perspectiva mais ampla.
Lembremos: após assembléia tumultuosa, os trabalhadores da Volks aceitaram a proposta da fábrica: 3.600 demissões voluntárias nos próximos meses. Aliviado, o governo Lula se apressou em anunciar que liberará vultoso empréstimo do BNDES para ajudar na modernização da empresa.
A proposta foi aprovada por cerca de 60% dos presentes. Proposta, aliás, não é bem o termo. A palavra certa é chantagem, pois a escolha foi entre demissão voluntária com benefícios financeiros ou demissão sem nenhum benefício além do estritamente estabelecido na legislação trabalhista.
Não se pode exigir que os trabalhadores da fábrica resistam isolados a um movimento de caráter mundial. A indústria de todo o mundo está se reciclando. O paradigma fordista foi superado por novas tecnologias produtivas, e isso implica drástica redução de postos de trabalho. O movimento é tão forte que a empresa se julgou em condições de fazer uma ameaça: ou as demissões seriam aceitas ou a fábrica seria fechada!
O governo reagiu de forma pífia. Em vez de repudiar a chantagem, se limitou a anunciar, timidamente, que, se as negociações fracassassem, poderia rever o empréstimo milionário que o BNDES está dando à empresa, colaborando assim para substituir trabalhadores por máquinas.
O meio sindical não se manifestou com a firmeza necessária, e a igreja, outrora solidária e organizadora do auxílio-greve, ficou quieta. Isolados ante o dilema "morte lenta com sedativo ou morte súbita sem sedativo" -um dilema que se repete hoje diante de todos os grandes problemas brasileiros-, os trabalhadores cederam.
Além da indignação que causa a petulância de uma empresa que auferiu grandes lucros em nosso país durante mais de 40 anos se beneficiando de inúmeros favores governamentais, o episódio evidencia a magnitude das mudanças que estão ocorrendo no mundo capitalista. As demissões fazem parte dessas mudanças e demonstram, inequivocamente, que, cedendo às exigências dos centros do capitalismo, o Brasil não conseguirá superar a condição de economia periférica, dependente e subordinada.
Essa catástrofe anunciada está à vista de toda a população. Mas esta, golpeada por sucessivas desilusões com suas lideranças políticas, não reage. Está totalmente anestesiada.
Isso transforma em verdadeiro estelionato eleitoral as promessas de dar emprego à juventude e salários dignos aos trabalhadores sem que se apresente uma alternativa à "estratégia da morte lenta". Rememoremos: em 1992, foram criadas as câmaras setoriais para negociar entre os três "parceiros" -trabalhadores, multinacionais e governo- a atenuação dos impactos da globalização na indústria brasileira. Naquela época, a Volkswagen empregava 18 mil trabalhadores e produzia 960 veículos/dia. Atualmente, emprega 11.900 e produz os mesmos 960 veículos/dia. Portanto, nesses 14 anos, a produção passou de 14 para 21 veículos por trabalhador/ano. Ou seja, a produtividade aumentou 50%, e o emprego encolheu 33%.
A indiferença com que a opinião pública acompanhou o drama dos trabalhadores da Volkswagen revela que os brasileiros ainda não perceberam que o mesmo se repetirá em todo o parque industrial do país e que atingirá, com maior ou menor intensidade, todos os trabalhadores brasileiros atuais e futuros.
Não se trata, portanto, de um problema dos trabalhadores daquela empresa, dos operários da indústria automobilística ou mesmo da classe trabalhadora. Trata-se de um problema nacional a requerer não uma solução técnica -que não há-, mas uma solução política, por meio de uma decisão nacional soberana. Se não for capaz de tomá-la, o povo brasileiro terá o mesmo trágico destino das estirpes condenadas que García Márquez retratou em seu livro "Cem Anos de Solidão".


PLINIO DE ARRUDA SAMPAIO, 76, advogado, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do "Correio da Cidadania". Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação). É candidato do PSOL ao governo de São Paulo.

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