São Paulo, sábado, 27 de setembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
debates@uol.com.br

O apoio de Lula será um fator decisivo nas eleições municipais deste ano?

SIM

Do amor na política

RENATO LESSA

NOS IDOS do império, nos quais eleições razoavelmente limpas configuravam-se como impossibilidades existenciais, houve uma que se destacou das demais na arte de produzir desrepresentação.
A coisa passou-se nos anos 40 do século 19, sob o consulado de Alves Branco e de seu partido -o Liberal-, que impôs aos seus adversários um massacre eleitoral de tal monta que o evento acabou consagrado na crônica da bestialogia nacional como "as eleições do cacete".
Ante a grita dos massacrados, que acusavam o governo de manipulação eleitoral, o liberal ministro foi didático: não há que confundir o princípio das "maiorias por compressão" -artificiais e obtidas pela força- com o das "maiorias de amor" -que resultam de modo natural do "princípio da gratidão". E era este, é claro, o caso.
Bastaram a Alves Branco apenas um partido, alguma desfaçatez e muita fraude para desfrutar de seu experimento amoroso. Ao presidente Lula bastam os incontáveis partidos de sua base parlamentar, uma popularidade pessoal crescente e uma vocação política para o "unanimismo". Parece não haver queixas diante do experimento amoroso revivido na safra 2008: qual dos candidatos a prefeito das capitais se apresenta como desafeto de Lula? No início de setembro, dava-se como provável a vitória do presidente em 20 das 26 capitais. Engana-se o leitor que supuser que nas demais se exerce a republicana praxe do contraditório político-eleitoral. Está aí o candidato do PSDB à prefeitura de Teresina, Silvio Mendes, a ser processado pelos rivais petistas... pelo uso positivo da imagem do próprio Lula.
A faca na boca e a espuma no canto dos lábios, dos idos de 2005, desapareceram, por ora, da cena nacional. Nas capitais nas quais o bloco do presidente lidera, dois casos interessantes devem ser considerados. O de Kassab é pungente. O gerente da urbe paulistana declara abertamente seu amor por Lula. Teve o cuidado de compensá-lo com menções afetuosas a José Serra e a Fernando Henrique Cardoso, mas nada que dissipe a sensação de que vivemos eleições sem política, sem algo que ultrapasse a medíocre cultura da gestão.
No Rio de Janeiro, um ex-deputado hidrófobo da CPI do Mensalão se apresenta como esteio da colaboração município-Estado-União. Ao lado do "governador-que-ri" -o boa-praça Sérgio Cabral Filho-, o candidato do PMDB sente-se inteiramente à vontade para incluir Lula em seu panteão. Para completar o cafarnaum habitual carioca, Lula torce por Marcelo Crivella e sua versão do teológico-político. A ver navios, ficam partido do presidente e dois aliados, desde os tempos magros: o PC do B e o PSB.
O conjunto dos mais de 5.000 municípios submetidos à temporada de captura de sufrágios, versão 2008, configura um vasto e variado mundo cuja complexidade recomenda não acreditar que algum fator comum, por mais forte que seja, possa definir os resultados. É prudente supor que fatores locais poderão ter papel relevante nas escolhas dos eleitores, para além da gratidão a um presidente tão popular.
No entanto, a base aliada é tão ampla que mesmo a escolha movida por fatores locais, por parte dos eleitores, acabará por escolher algum amigo do presidente. A situação é curiosa: ficaremos a olhar para os votos, como um boi a olhar para um palácio, e a perguntar o quanto de avaliação política local e o quanto de gratidão interferem em sua alquimia. Volto ao caso do Rio: aqui, com certeza, ganhará algum "amigo" do presidente. Não importa se neo-amigo, muy-amigo ou companheiro-amigo: o fato é que a tintura de "unanimismo" que caracteriza a base político-partidária e parlamentar do presidente e determina a sua extensão acabará por camuflar as motivações "reais" do eleitor.
Sendo assim, como não considerar o presidente como relevante na configuração do resultado? Se dúvida ainda houver, ouçamos o silêncio e a prudência de seus inimigos e adversários. Estranho modo de "consolidar" a democracia, não?

RENATO LESSA , 54, doutor em ciência política, é professor titular de teoria e filosofia política do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e da UFF (Universidade Federal Fluminense) e presidente do Instituto Ciência Hoje.



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Jairo Nicolau: O efeito decisivo e o efeito marginal

Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.