São Paulo, quinta-feira, 27 de outubro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

A rede pode ser mundial?

Você já viu um site na internet terminado em .us? Existem, mas são raros. Os usuários de todos os países registram, principalmente, domínios com códigos nacionais, como .br, .ar, .fr etc. Menos nos EUA, onde costuma-se empregar sufixos genéricos (.com, .net, .org) ou sufixos de uso exclusivo (.edu, .mil). É quase como na antiga União Soviética, onde o Partido Comunista Soviético (PCUS) tinha 14 partidos comunistas filiados, um para cada república menos a Rússia. Não existia um Partido Comunista Russo, pois o PCUS era o instrumento do poder imperial russo sobre a URSS.
A internet nasceu por iniciativa do Pentágono, sob a denominação de Arpanet, em 1969. Tornou-se pública em 1989 e, nove anos depois, o governo americano "privatizou" sua gestão, atribuindo-a ao Icann (Corporação da Internet para o Anúncio de Nomes e Números), uma organização autônoma contratada pelo Departamento de Comércio. Agora, uma coalizão de Estados, da qual participa o Brasil, reivindica que a gestão da rede seja transferida para uma agência da ONU.
O alvo das críticas é o Icann. Supostamente técnico, o Icann exercita um poder de natureza política, com óbvias repercussões econômicas. Ele resiste em discutir o spam e os vírus eletrônicos, que geram custos em toda a rede, mas alimentam negócios empresariais lucrativos. Ele estimula um mercado especulativo baseado na escassez artificial de domínios, que já abrange um balcão de negócios de códigos atribuídos a países. O sufixo .tv, de Tuvalu, foi vendido pelo governo do miserável arquipélago do Pacífico para ser leiloado entre empresas de televisão.
Mas o núcleo do contencioso é geopolítico. O temor, expresso aos sussurros, é que os EUA derrubem a internet de países "hostis". Isso é possível, pois a maioria dos servidores de raiz, que identificam os códigos principais de domínios e direcionam o tráfego da rede, estão sob controle americano. Durante a Guerra do Iraque, Bagdá perdeu, misteriosamente, suas conexões de internet.
As redes tradicionais, como as ferrovias e rodovias, são nacionais. A rede de tráfego aéreo parece mundial, mas é uma coleção de redes nacionais justapostas por acordos bilaterais. A internet é uma rede americana de alcance global, pois Washington retém o poder de gestão do seu território virtual. A Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (Tunis, 16 a 18 de novembro) promete uma batalha épica sobre a natureza estratégica da internet.
A proposta sustentada pelo Brasil transfere o poder de decisão política para a esfera intergovernamental, introduzindo o espectro da censura de Estado nos conteúdos da rede. Claro que ela foi embrulhada em lindas palavras, como multilateralismo, democracia e transparência, enquanto recebia o apoio entusiástico da China, da Síria e do Irã. Os EUA, ocultando argumentos de segurança nacional sob uma rota bandeira da liberdade, anunciaram que não abrem mão da soberania sobre a rede que criaram. A União Européia declarou-se por um "governo" mundial para a internet, isolando os EUA, mas depois tomou distância do projeto liberticida brasileiro.
O impasse pode até desembocar na destruição da unidade da internet. Por enquanto, ensina aos incautos que a "realidade virtual" continua presa aos frios imperativos geopolíticos da "realidade real".


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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