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DEMÉTRIO MAGNOLI
A rede pode
ser mundial?
Você já viu um site na internet
terminado em .us? Existem, mas
são raros. Os usuários de todos os países registram, principalmente, domínios com códigos nacionais, como .br,
.ar, .fr etc. Menos nos EUA, onde costuma-se empregar sufixos genéricos
(.com, .net, .org) ou sufixos de uso exclusivo (.edu, .mil). É quase como na
antiga União Soviética, onde o Partido
Comunista Soviético (PCUS) tinha 14
partidos comunistas filiados, um para
cada república menos a Rússia. Não
existia um Partido Comunista Russo,
pois o PCUS era o instrumento do poder imperial russo sobre a URSS.
A internet nasceu por iniciativa do
Pentágono, sob a denominação de Arpanet, em 1969. Tornou-se pública em
1989 e, nove anos depois, o governo
americano "privatizou" sua gestão,
atribuindo-a ao Icann (Corporação da
Internet para o Anúncio de Nomes e
Números), uma organização autônoma contratada pelo Departamento de
Comércio. Agora, uma coalizão de Estados, da qual participa o Brasil, reivindica que a gestão da rede seja transferida para uma agência da ONU.
O alvo das críticas é o Icann. Supostamente técnico, o Icann exercita um
poder de natureza política, com óbvias repercussões econômicas. Ele resiste em discutir o spam e os vírus eletrônicos, que geram custos em toda a
rede, mas alimentam negócios empresariais lucrativos. Ele estimula um
mercado especulativo baseado na escassez artificial de domínios, que já
abrange um balcão de negócios de códigos atribuídos a países. O sufixo .tv,
de Tuvalu, foi vendido pelo governo
do miserável arquipélago do Pacífico
para ser leiloado entre empresas de televisão.
Mas o núcleo do contencioso é geopolítico. O temor, expresso aos sussurros, é que os EUA derrubem a internet de países "hostis". Isso é possível, pois a maioria dos servidores de
raiz, que identificam os códigos principais de domínios e direcionam o tráfego da rede, estão sob controle americano. Durante a Guerra do Iraque,
Bagdá perdeu, misteriosamente, suas
conexões de internet.
As redes tradicionais, como as ferrovias e rodovias, são nacionais. A rede
de tráfego aéreo parece mundial, mas
é uma coleção de redes nacionais justapostas por acordos bilaterais. A internet é uma rede americana de alcance global, pois Washington retém o
poder de gestão do seu território virtual. A Cúpula Mundial da Sociedade
da Informação (Tunis, 16 a 18 de novembro) promete uma batalha épica
sobre a natureza estratégica da internet.
A proposta sustentada pelo Brasil
transfere o poder de decisão política
para a esfera intergovernamental, introduzindo o espectro da censura de
Estado nos conteúdos da rede. Claro
que ela foi embrulhada em lindas palavras, como multilateralismo, democracia e transparência, enquanto recebia o apoio entusiástico da China, da
Síria e do Irã. Os EUA, ocultando argumentos de segurança nacional sob
uma rota bandeira da liberdade,
anunciaram que não abrem mão da
soberania sobre a rede que criaram. A
União Européia declarou-se por um
"governo" mundial para a internet,
isolando os EUA, mas depois tomou
distância do projeto liberticida brasileiro.
O impasse pode até desembocar na
destruição da unidade da internet. Por
enquanto, ensina aos incautos que a
"realidade virtual" continua presa aos
frios imperativos geopolíticos da "realidade real".
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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