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São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma nova maneira de caminhar

MARINA SILVA

O acreano seringal Bagaço, onde nasci, tem estado muito vivo em minhas lembranças ultimamente. Em meio à agenda de mobilização no país inteiro, às vésperas do grande encontro que será a 1ª Conferência Nacional do Meio Ambiente e a Conferência Infanto-Juvenil, a memória insiste em ver e reler aquele ambiente tão diferente e, na sua solidão, tão fértil de significados e laços com o mundo, como aprendi depois.
Lembro-me bem da passagem do "noteiro", sempre uns 15 dias antes do comboio que levava a borracha. Ele anotava a quantidade prevista da nossa produção e também as encomendas -sal, açúcar, remédios, algum tecido. Uma espécie de escambo; quase nunca víamos o dinheiro naquela troca, desigual, em que o preço pago pela borracha era muito baixo e o cobrado pelas mercadorias muito alto.


Nunca foi muito boa a relação do país com sua privilegiada condição de megadetentor de recursos naturais


Quando o noteiro chegava, ele já avisava minha mãe: "Pede pras meninas juntar bastante semente" (sic). Eram as sementes de seringueira espalhadas pelo chão. Cumpríamos a tarefa no maior entusiasmo, porque a recompensa era uma lata de leite condensado ou "bala-bombom". Certa vez perguntei a meu pai por que o noteiro queria as sementes. Ele respondeu: "Sei lá, deve ser pra fazer sabão". Não era, como vim a entender.
Nossa inocência -inclusive a do noteiro- e nossas sementes eram usadas para alimentar bancos de germoplasma dos seringais de cultivo da Malásia.
Não faz tanto tempo assim; são cerca de 35 anos, nos quais o Brasil seguiu perdendo o bonde da história por falta de visão estratégica no uso de seus recursos naturais para o desenvolvimento. Não só perdemos o monopólio da borracha, como desperdiçamos muitas oportunidades de fazer da rica biodiversidade de nossos biomas um poderoso diferencial competitivo.
Nunca foi muito boa a relação do país com sua privilegiada condição de megadetentor de recursos naturais. Além da biodiversidade, temos 13% da água doce num mundo em que ela é cada vez mais escassa e preciosa. Nossa sociedade e o poder público parecem ter com o meio ambiente uma relação de amor e ódio. De um lado, a natureza brasileira é cantada, admirada, motivo de orgulho. De outro, é destruída irresponsavelmente, sem compromisso com o destino coletivo, ou seja, com o chegar a um projeto de desenvolvimento justo e equilibrado.
Na Conferência da ONU sobre o Ambiente Humano, em 72, o governo brasileiro deu boas-vindas às indústrias poluidoras que já começavam a sofrer restrições nos países desenvolvidos. Dizia-se que poluição é sinônimo de progresso. Com essas idéias, combinadas a um modelo social injusto e excludente, chegamos a uma situação de grave injustiça ambiental: os pobres herdam os lugares de pior degradação ambiental, mas não as riquezas derivadas do uso de recursos naturais que são patrimônio de todos.
A 1ª Conferência simboliza um ponto de inflexão histórico. O acúmulo de erros e acertos, conhecimento e consciência, luta e vontade mostra claramente que não há volta: daqui para frente o caminho tem que ser outro. E o modo de caminhar também.
A base para essa mudança está dada. O esforço de ambientalistas e socioambientalistas -dentro e fora dos governos- nas últimas décadas, nadando contra a corrente, registrou avanços significativos em legislação, estruturas de proteção, organização da sociedade, tecnologias, pesquisa e na demonstração e conceituação dos laços indissolúveis entre conservação ambiental, desenvolvimento, justiça social, ética pública e direito das gerações futuras.
Além disso, há processos importantes recentes que dialogam com este novo momento, a exemplo da implementação da Agenda 21 no Brasil. E há, sobretudo, espaços de negociação consolidados, como o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), fórum pioneiro, referência para a causa socioambientalista no Brasil, que hoje ganha renovada importância.
O governo do presidente Lula traz um elemento fundamental para essa inflexão: o compromisso de incorporar a variável ambiental no coração do processo de tomada de decisões do setor público. Não está sendo nem será fácil, mas hoje posso dizer que estamos indo na direção de uma política ambiental de governo. Esse é o caminho. É inadmissível abrir mão dele ou sequer pensar em relaxar na sua construção simplesmente porque existem dificuldades.
Não sem razão, o fortalecimento do Sisnama (Sistema Nacional de Meio Ambiente) é parte importante da agenda da conferência. Ele é o cerne da malha integrada de ações nos três níveis de governo -municipal, estadual e federal- e o maior ponto de apoio para a participação da sociedade na elaboração e na implementação da política ambiental. Sua ativação plena é essencial para criar e dar concretude a soluções duradouras, sólidas e democráticas.
Esse é o rumo. Não temos mais o argumento da inocência do seringal Bagaço. É hora de catarmos as sementes, mas, desta vez, para nós mesmos.

Marina Silva, 45, historiadora, senadora pelo PT-AC, é ministra do Meio Ambiente.


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