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TENDÊNCIAS/DEBATES
Delegados do povo ou donos do poder?
FÁBIO KONDER COMPARATO
Estamos ante parlamentares que falam sobre propostas que não leram, com o intuito de preservar a usurpação da soberania popular
NA EDIÇÃO de maio de 1811 do
"Correio Braziliense", Hipólito da Costa fez a seguinte profissão de fé: "Ninguém deseja mais do
que nós as reformas; mas ninguém
aborrece mais do que nós que essas
reformas sejam feitas pelo povo; pois
conhecemos as más conseqüências
desse modo de reformar; desejamos
as reformas, mas feitas pelo governo;
e urgimos que o governo as deve fazer
enquanto é tempo, para que se evite
serem feitas pelo povo".
O grande jornalista teve o mérito de
dizer sem eufemismos o que pensava.
Hoje, quase dois séculos depois que
tais palavras foram escritas, ninguém
no meio político ousa dizer-se de direita ou antidemocrata, mas quase todos continuam plenamente convencidos de que o povo é, por natureza,
incapaz de exercer a soberania. Esta
pertence, por direito imemorial,
àquele grupo que, por consolidado
abuso de linguagem, insistimos em
denominar "a elite".
Admite-se, quando muito, que o
povo escolha periodicamente os seus
tutores ou curadores. Mas a esmagadora maioria destes, como ninguém
ignora, exerce o encargo no seu próprio interesse e benefício.
A Constituição Federal de 1988 teve o grande mérito de iniciar o processo de desmontagem desse esquema cínico e perverso, ao afirmar, logo
no primeiro de seus artigos, que o povo pode e deve exercer o seu poder soberano diretamente, e não apenas pela eleição de mandatários. Em conseqüência, dispôs expressamente em
seu artigo 14 que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, tanto
quanto o sufrágio eleitoral, são manifestações da soberania popular.
Como era, porém, de esperar, esse
mandamento constitucional foi desde logo interpretado como fórmula de
retórica política, sem nenhum efeito
prático. O povo pode continuar a eleger os seus autoproclamados representantes, mas dependerá sempre da
autorização prévia destes para votar
em plebiscitos e referendos.
Foi para desfazer essa fraude oligárquica que a Ordem dos Advogados
do Brasil ofereceu várias sugestões ao
Congresso Nacional, prontamente
transformadas em projetos de lei e
propostas de emenda constitucional.
Agora, com o anúncio pelo ministro
Tarso Genro de que o governo federal
apoiaria tais proposições, as reações
negativas no Congresso não se fizeram esperar.
Ouvidos por este jornal, quase todos os líderes de partidos disseram
que retirar do Congresso Nacional a
prerrogativa de comandar a realização de plebiscitos e referendos redundaria em concentrar mais poderes na
pessoa do chefe de Estado, criando,
assim, o risco de institucionalizar o
"chavismo".
Sucede que, em ambos os projetos
de lei originados na Ordem dos Advogados do Brasil -o de nš 4.718/2004,
na Câmara, e o nš 1/2006, no Senado,
este apresentado pelos eminentes senadores Eduardo Suplicy e Pedro Simon-, o presidente da República não
tem poder de iniciativa nessa matéria. Os plebiscitos e referendos só poderão ser convocados por iniciativa
do próprio povo ou de um terço dos
deputados ou senadores (o que reforça sobremaneira o poder de fogo da
minoria parlamentar contra o rolo
compressor governamental).
Insinuou-se, também, que, pelo sistema proposto, o povo poderia decidir diretamente em plebiscito a reeleição indefinida do presidente da República. Insinuação maliciosa e falsa,
pois, em ambos os projetos de lei, ao
contrário do que dispõe a vigente lei
nš 9.709, de 1998, as matérias suscetíveis de decisão em plebiscitos são taxativamente enumeradas -e entre
elas não consta a reeleição do chefe de
Estado.
Outros, ainda, declararam-se contrários ao "recall", tal como proposto,
porque ele atingiria tão-só os parlamentares, poupando o presidente da
República. Mais uma inverdade: na
proposta de emenda constitucional
nš 73/2005, em tramitação no Senado, a revogação popular de mandatos
eletivos diz respeito não só aos membros do Congresso Nacional mas também ao presidente da República.
Aliás, é sempre bom lembrar que
esses institutos estão longe de ser novidades revolucionárias. A Suíça conhece e pratica com freqüência o referendo desde o século 15. O "recall"
existe em 18 Estados da Federação
norte-americana, em alguns deles há
quase um século.
Em suma, estamos diante de parlamentares que se pronunciam sobre
propostas que não leram, com o mal
disfarçado objetivo de preservar uma
inconfessável usurpação da soberania popular.
FÁBIO KONDER COMPARATO, 70, advogado, professor
titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB e fundador e diretor da
Escola de Governo, em São Paulo. É autor, entre outras
obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".
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