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São Paulo, sexta-feira, 28 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Suicídio coletivo?

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Segundo Franz Hinkelammert, o Ocidente tem recorrentemente caído na ilusão de tentar salvar a humanidade através da destruição de parte dela. Trata-se de uma destruição salvífica e sacrificial, cometida em nome da necessidade de concretizar radicalmente todas as possibilidades abertas por uma dada realidade social e política sobre a qual se supõe ter um poder total.
Foi assim no colonialismo, com o genocídio dos povos indígenas e dos escravos africanos. Foi assim no período de lutas imperialistas que causaram milhões de mortos em duas guerras mundiais. Foi assim no estalinismo, com o Gulag, e no nazismo, com o Holocausto. É assim hoje, no neoliberalismo, com o sacrifício coletivo do Terceiro Mundo.
Com a guerra contra o Iraque, cabe perguntar se está em curso uma nova ilusão genocida e sacrificial e qual o seu âmbito. Cabe, sobretudo, perguntar se a nova ilusão não anunciará a radicalização e a perversão última da ilusão ocidental: destruir toda a humanidade com a ilusão de a salvar. Se assim for, tratar-se-á de uma radicalização do mesmo tipo da que, por razões muito diferentes, há muito vem sendo denunciada pelo movimento ecológico.
O genocídio sacrificial decorre de uma ilusão totalitária que se manifesta na crença de que não há alternativas à realidade presente e de que os problemas e as dificuldades que esta enfrenta decorrem de a sua lógica de desenvolvimento não ter sido levada às últimas consequências. Se há desemprego, fome e morte no Terceiro Mundo, isso não resulta dos malefícios ou das deficiências do mercado, é antes o resultado de as leis do mercado não terem sido aplicadas integralmente. Se há terrorismo, tal não é devido à violência das condições que o geram, mas ao fato de não se ter recorrido à violência total para eliminar todos os terroristas.
Esta lógica política, assente na suposição do poder e do saber totais e na recusa das alternativas, é ultraconservadora, na medida em que pretende reproduzir infinitamente o status quo. É-lhe inerente a idéia do fim da história. Durante os últimos cem anos, o Ocidente passou por três versões dessa lógica: o estalinismo, com a sua lógica da eficiência insuperável do plano; o nazismo, com a sua lógica da superioridade racial; e o neoliberalismo, com a sua lógica da eficiência insuperável do mercado.


Com a guerra, cabe perguntar se está em curso uma nova ilusão genocida e sacrificial e qual o seu âmbito


Os dois primeiros momentos envolveram a destruição da democracia. O último trivializa a democracia, desarmando-a ante atores sociais suficientemente poderosos para privatizarem a seu favor o Estado e as instituições internacionais. Tenho caracterizado esta situação como uma combinação de democracia política com fascismo social. Uma manifestação atual dessa combinação reside no fato de a fortíssima opinião pública mundial revelar-se incapaz de parar a máquina de guerra dos governantes supostamente democráticos.
Em todos esses momentos domina uma pulsão de morte, um heroísmo de catástrofe, a idéia da iminência de um suicídio coletivo que só se previne pela destruição maciça do outro. Paradoxalmente, quanto mais ampla é a definição do outro e eficaz é a sua destruição, tanto mais provável é o suicídio coletivo. Na sua versão genocida sacrificial, o neoliberalismo é uma mistura de radicalização do mercado, neoconservadorismo e fundamentalismo cristão. A sua pulsão de morte tem assumido várias formas, desde a idéia das "populações descartáveis", para referir os cidadãos do Terceiro Mundo inaptos a serem explorados como operários e consumidores, até o conceito de "danos colaterais", para designar a morte de milhares de civis em consequência da guerra.
É possível lutar contra essa pulsão de morte? Historicamente, a destruição sacrificial esteve sempre associada à pilhagem econômica dos recursos naturais e da força de trabalho, ao desígnio imperial de mudar radicalmente os termos das trocas econômicas, sociais, políticas e culturais ante a quebra das taxas de eficiência postuladas pela lógica maximalista da ilusão totalitária em vigor. É como se as potências hegemônicas passassem recorrentemente, tanto em sua fase de ascensão como em sua fase de declínio, por momentos de acumulação primitiva, legitimadores das mais ignominiosas violências em nome de futuros em que, por definição, não cabe tudo o que se tem de destruir.
Em sua versão atual, o momento de acumulação primitiva consiste na combinação da globalização econômica neoliberal com a globalização da guerra. Contra ela está em curso a globalização contra-hegemônica, solidária, protagonizada pelos movimentos sociais e ONGs de que o 3º Fórum Social Mundial foi uma manifestação eloquente.
O FSM tem sido uma portentosa afirmação da vida no seu sentido mais amplo e plural. Penso que a nova situação obriga o movimento dos movimentos a se repensar e a reconfigurar as suas prioridades. É sabido que o fórum, logo em sua segunda reunião, em 2002, identificou a articulação entre o neoliberalismo econômico e o belicismo imperial e, por isso, organizou o Fórum Mundial da Paz, de que a segunda edição teve lugar em 2003. Isso, porém, não basta. É necessária uma inflexão estratégica.
Os movimentos sociais devem dar prioridade à luta pela paz como condição necessária ao êxito de todas as outras lutas. Isso significa que têm de estar na frente da luta pela paz. Todos os movimentos contra-hegemônicos são, a partir de agora, movimentos pela paz. Estamos em plena Quarta Guerra Mundial (a terceira foi a Guerra Fria) e a espiral de guerra vai certamente continuar a girar. O princípio da não-violência, que consta da Carta de Princípios do FSM, tem de deixar de ser uma exigência feita aos movimentos para passar a ser uma exigência global dos movimentos.
Essa inflexão é necessária para contrapor à vertigem do suicídio coletivo a celebração da vida, um humanismo novo, cosmopolita, construído contra as abstrações iluministas, a partir da resistência concreta ao sofrimento humano imposto pelo verdadeiro "eixo do mal": neoliberalismo e guerra.

Boaventura de Sousa Santos, 62, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


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