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São Paulo, quarta-feira, 28 de maio de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A tradição dos fantasmas

RIO DE JANEIRO - Ao contrário do que acontece com muita gente, toda vez que Lula lê um discurso, sente-se que o texto foi escrito por outros e traduz o melhor que se poderia esperar de um presidente em início de mandato. Mas, ao falar de improviso, ele insiste em continuar a pregação de candidato, como se nada tivesse a ver com o governo que está presidindo.
No começo de minha profissão, fiquei estarrecido quando soube que as autoridades geralmente liam discursos escritos por outros. Tivemos uma brilhante geração de escritores fantasmas que deram glória a Vargas e a JK. Basta citar os nomes de Ronald de Carvalho, José Maciel (texto da carta-testamento), Álvaro Lins, Augusto Frederico Schmidt e -por que não?-, José Guilherme Merquior em alguns pronunciamentos de Collor.
Com o tempo, fui me habituando e, até certo ponto, tornei-me vítima dessa prática que o dia-a-dia de uma administração tolera e justifica.
Não havia chegado aos 20 anos e o pai me apresentou a um senhor que ia fazer parte de um novo governo aqui no Rio. Fui tratado com benevolência. O pai se retirou e o sujeito me submeteu a um teste. Ofereceu-me sua máquina de escrever e me pediu um esforço de imaginação: se eu fosse prefeito de uma cidade como o Rio, o que diria no meu discurso de posse?
Desovei cinco ou seis laudas e esperei pelo emprego que não veio. Mas, na semana seguinte, li nos jornais o discurso do novo alcaide que prometia maravilhas mil para a cidade já maravilhosa e cheia de encantos mil.
Era o meu texto de ponta a ponta, apenas com um trecho suplementar escrito provavelmente pelo sujeito que me fez a encomenda: um elogio desvairado ao presidente da República que nomeara o novo prefeito.
Depois dessa infeliz estréia, eu deveria ter-me habituado. Mesmo assim, estranho quando Lula lê um bom discurso e faz um mau improviso.


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