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CARLOS HEITOR CONY
A tradição dos fantasmas
RIO DE JANEIRO - Ao contrário do que acontece com muita gente, toda
vez que Lula lê um discurso, sente-se
que o texto foi escrito por outros e traduz o melhor que se poderia esperar
de um presidente em início de mandato. Mas, ao falar de improviso, ele
insiste em continuar a pregação de
candidato, como se nada tivesse a ver
com o governo que está presidindo.
No começo de minha profissão, fiquei estarrecido quando soube que as
autoridades geralmente liam discursos escritos por outros. Tivemos uma
brilhante geração de escritores fantasmas que deram glória a Vargas e a
JK. Basta citar os nomes de Ronald de
Carvalho, José Maciel (texto da carta-testamento), Álvaro Lins, Augusto
Frederico Schmidt e -por que
não?-, José Guilherme Merquior em
alguns pronunciamentos de Collor.
Com o tempo, fui me habituando e,
até certo ponto, tornei-me vítima
dessa prática que o dia-a-dia de uma
administração tolera e justifica.
Não havia chegado aos 20 anos e o
pai me apresentou a um senhor que
ia fazer parte de um novo governo
aqui no Rio. Fui tratado com benevolência. O pai se retirou e o sujeito me
submeteu a um teste. Ofereceu-me
sua máquina de escrever e me pediu
um esforço de imaginação: se eu fosse
prefeito de uma cidade como o Rio, o
que diria no meu discurso de posse?
Desovei cinco ou seis laudas e esperei pelo emprego que não veio. Mas,
na semana seguinte, li nos jornais o
discurso do novo alcaide que prometia maravilhas mil para a cidade já
maravilhosa e cheia de encantos mil.
Era o meu texto de ponta a ponta,
apenas com um trecho suplementar
escrito provavelmente pelo sujeito
que me fez a encomenda: um elogio
desvairado ao presidente da República que nomeara o novo prefeito.
Depois dessa infeliz estréia, eu deveria ter-me habituado. Mesmo assim, estranho quando Lula lê um bom discurso e faz um mau improviso.
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