São Paulo, sexta-feira, 28 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

China, uma aposta de alto risco

JEFFERSON PÉRES

Com monótona periodicidade, surgem no mundo acadêmico, e ganham aceitação nos meios políticos, teses a respeito da decadência dos EUA e da inevitável perda do seu poder hegemônico, transferido para uma nova potência emergente. Profecias que sempre se frustram, porque a hegemonia americana permanece e parece crescer -observação que faço como constatação, sem juízo de valor.
O primeiro candidato, eleito por esses analistas, foi o Mercado Comum Europeu, em meados do século passado, que em breve daria supremacia política e econômica ao Velho Continente. Profecia logo desfeita por um livro demolidor, "O Desafio Americano", do francês Jean-Jacques Servan-Schreiber, que demonstrava terem os EUA condições muito melhores para vencer a corrida. Não deu outra. A seguir, o favoritismo passou para a União Soviética, então embalada por forte crescimento econômico e, principalmente, pelo êxito do seu programa espacial. Delirante, Nikita Kruschev, com apoio de toda a esquerda mundial, prognosticou que em pouco tempo o seu país sepultaria os EUA. Como alguém já disse, e todos sabemos, em vez da explosão do capitalismo, assistimos à implosão do socialismo.
Mais tarde, nos anos 80, o Japão foi o novo ungido pelos profetas. Era o auge do chamado "milagre japonês", quando a economia daquele país ostentava elevadas taxas de crescimento, seus produtos inundavam os mercados alheios e suas empresas adquiriam ativos de empresas americanas dentro dos EUA. Parecia imbatível e muitos vaticinavam que ultrapassaria o colosso ianque antes do fim do século. Para decepção dos arúspices, na década seguinte a locomotiva japonesa parou e o carro americano disparou, sustentando dez anos de crescimento contínuo.
Agora, a bola da vez é a China, apontada em uníssono como o novo pólo de poder mundial, com possibilidade de suplantar os EUA em futuro não muito distante. No Brasil, muitos apostam nisso e preconizam uma intensificação das nossas relações com o país asiático, não apenas como um importante parceiro comercial, mas como integrante de uma aliança geopolítica capaz de se contrapor à hegemonia americana. Eis aí uma aposta de alto risco, a merecer sua inclusão numa agenda nacional de debates, dada a relevância do tema. E antes que embarquemos numa aventura que pode terminar em desastre.


Não devemos eleger a China, açodadamente, como nosso parceiro privilegiado. Seria uma aposta de altíssimo risco


Entendo que, em comparação aos três candidatos descartados -Europa, União Soviética e Japão- ao posto de pólo rival dos EUA, a China talvez seja, pelas suas fragilidades, a que menos condições reúne para alcançá-los. Nenhum dos outros apresentava tantos desafios e incertezas em todos os campos: político, social e econômico.
Politicamente, persiste o problema da contradição insanável entre, de um lado, um sistema institucional totalitário e, de outro, uma economia de mercado cada vez mais aberta. A abertura política terá de ocorrer, cedo ou tarde. E mesmo que ocorra de forma não traumática, gradualmente, ainda assim haverá de liberar forças e gerar pressões com grande potencial de desestabilização.
Socialmente, o país passou de um modelo igualitário, com baixos salários, mas de pleno emprego e muitos benefícios previdenciários, para outro, de salários mais altos, mas sem rede de proteção e com precários direitos trabalhistas. Também nesse aspecto há fontes de tensão potencialmente graves.
Economicamente, o crescimento acelerado e o aumento da produtividade, que espantam o mundo, terão de sofrer desaceleração, devido aos problemas do sistema financeiro, das pressões inflacionárias, dos estrangulamentos na infra-estrutura e do passivo ambiental. E não sabemos as conseqüências do desaquecimento econômico se a dose for muito forte. É uma incógnita.
No tocante às relações bilaterais com o Brasil, mesmo que lá não ocorra o pior, nem por isso deixaremos de ter problemas a médio e longo prazos, embora possamos ganhar de imediato. A prazo médio, problemas poderão surgir porque a China, à semelhança do que ocorreu com outros "tigres asiáticos", em seu processo de industrialização, está passando da fabricação de artigos intensivos em mão-de-obra para outros, com maior agregação de valor. No campo dos manufaturados, logo o setor industrial chinês deixará de ser complementar, para se tornar concorrencial ao nosso. Um perigo enorme, tendo em vista a sua maior competitividade.
No longo prazo, o modelo de desenvolvimento da China é ecologicamente insustentável. Trata-se de um monstro energívoro, deglutidor de matérias-primas, destruidor de recursos naturais e altamente poluidor. A ser mantido, a elevação dos padrões de consumo da sua população destruirá o planeta inteiro. O futuro da China é, assim, um enigma dramático, porque indecifrável não daqui a 50, mas daqui a cinco anos.
Não significa dizer que não façamos parcerias pontuais com aquele país. Significa que não devemos elegê-lo, açodadamente, como nosso parceiro privilegiado. Seria, repito, uma aposta de altíssimo risco e que pode revelar-se tragicamente equivocada, porque sua derrocada nos arrastaria junto. Para repetir a voz do povo, devagar com o andor, que o santo é de barro. Ou melhor, para ficar com a metáfora da argila, muito cuidado, porque o gigante tem pés de barro.

Jefferson Péres, 72, advogado, é senador pelo PDT-AM.


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