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TENDÊNCIAS/DEBATES
Dois erros não fazem um acerto
HERTHA HELENA R. P. PALERMO e JAYME MARTINS DE OLIVEIRA NETO
Ao interromper gravidez indesejada, a mulher não está exercendo um direito próprio, mas violando o direito à vida de outrem
A QUESTÃO da descriminalização do aborto tem sido tratada
ora como questão religiosa, ora
como questão de saúde pública. No
entanto, abordada sob o aspecto jurídico, se constata que a opção do constituinte de 1988 foi a de alçar o direito
à vida como garantia fundamental.
Ao proclamar o direito à vida, a
Constituição Federal obriga o Estado
a assegurá-la em sua ampla acepção,
vale dizer, garantir o direito de continuar vivo e o direito de ter vida digna
quanto à subsistência. O desdobramento desse direito está reconhecido
na legislação infraconstitucional, ao
obrigar o Estado à promoção de políticas sociais públicas que permitam o
nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, inclusive com o
apoio alimentar à gestante, como previsto no Estatuto da Criança e do
Adolescente, ou pôr a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro,
como prevê o Código Civil.
A vida, sob a ótica biológica, tem
início com a fecundação do óvulo pelo
espermatozóide, se tornando viável a
partir da nidação, ou seja, quando o
zigoto se fixa no endométrio.
Os que afirmam que a questão é religiosa e que o Estado não pode proibir o aborto, porque laico, deslocam o
foco da discussão.
A proibição do aborto não decorre
da concepção religiosa de que a vida
deve ser protegida porque provém de
Deus, mas da constatação científica
de que o feto é individualidade diferente da mãe que o gera, porque tem
DNA próprio, não se confundindo
com o do pai ou o da mãe.
Ao interromper uma gravidez indesejada, a mulher não está exercendo
um direito próprio, mas violando o direito à vida de outrem. A concepção
de que o direito de abortar decorre do
direito da mulher ao próprio corpo,
como exercício de direito individual
de autonomia reprodutiva, está ultrapassada e somente se justificava nos
limitados conhecimentos científicos
do início do século passado, mas hoje
não resiste às evidências científicas
contemporâneas.
O direito individual de autonomia
reprodutiva se exerce em momento
anterior, quando o casal decide ou
não conceber, fazendo uso dos métodos contraceptivos modernos, de reconhecida eficiência. Todavia, gerada
a vida, deliberadamente ou não, ela
não pertence à mulher, ao homem ou
ao Estado.
Aqueles que sustentam que a legalização do aborto é uma questão de
saúde pública também deslocam o
centro da questão, no mais das vezes
para esconder a incompetência administrativa da gestão da saúde.
Se efetivamente querem enfrentar
a questão da saúde pública, então devem desenvolver programas de proteção à mulher, com garantia de acesso aos métodos contraceptivos seguros, ao planejamento familiar e à educação sexual. Sem isso, se pode afirmar, realmente, que o aborto é uma
questão de incompetência na gestão
da saúde pública.
Os juízes que já autuaram em varas
de infância e juventude conhecem o
calvário a que são submetidas mulheres, mães de numerosos filhos que
não conseguem sustentar, que optam
por fazer uma laqueadura pelo Sistema Único de Saúde. Se o Estado não é
capaz de garantir acesso a uma cirurgia de tal simplicidade em tempo razoável, o que justifica o acesso ao
aborto legal, se não o caráter meramente político de tal opção?
Enquanto o Estado não conseguir
oferecer a essas mulheres o acesso a
uma cirurgia de laqueadura em tempo razoável em vez da espera, que pode chegar a três anos; enquanto não
permitir acesso verdadeiro a todos os
métodos contraceptivos; enquanto
não incluir a educação e o planejamento familiar entre as prioridades
do governo, o discurso a favor do
aborto com fundamento na questão
de saúde pública é falso, porque mascara a realidade para negar o verdadeiro móvel, nascido de uma concepção política de Estado que orienta a
ação de organismos internacionais e
de onde provém sugestão de mudanças das normas brasileiras, nesse e
noutros setores, seguindo a linha da
globalização do pensar e invertendo
totalmente o ideário dos defensores
dos direitos humanos.
Assim como o direito individual da
mulher, a incompetência administrativa não pode servir de justificativa
para a violação do direito à vida, que,
no Brasil, tem especial proteção constitucional, já que garantido por cláusula imodificável, e muito menos para
a relativização desse direito, simplesmente porque dois erros não fazem
um acerto.
HERTHA HELENA R. P. PALERMO, juíza da 4ª Vara Cível
do Fórum Regional de Santo Amaro, é presidente do Ipam
(Instituto Paulista de Magistrados).
JAYME MARTINS DE OLIVEIRA NETO, juiz da 13ª Vara
da Fazenda Pública de São Paulo (SP), é vice-presidente
do Ipam.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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