São Paulo, segunda-feira, 28 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Dois erros não fazem um acerto

HERTHA HELENA R. P. PALERMO e JAYME MARTINS DE OLIVEIRA NETO

Ao interromper gravidez indesejada, a mulher não está exercendo um direito próprio, mas violando o direito à vida de outrem

A QUESTÃO da descriminalização do aborto tem sido tratada ora como questão religiosa, ora como questão de saúde pública. No entanto, abordada sob o aspecto jurídico, se constata que a opção do constituinte de 1988 foi a de alçar o direito à vida como garantia fundamental.
Ao proclamar o direito à vida, a Constituição Federal obriga o Estado a assegurá-la em sua ampla acepção, vale dizer, garantir o direito de continuar vivo e o direito de ter vida digna quanto à subsistência. O desdobramento desse direito está reconhecido na legislação infraconstitucional, ao obrigar o Estado à promoção de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência, inclusive com o apoio alimentar à gestante, como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, ou pôr a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, como prevê o Código Civil.
A vida, sob a ótica biológica, tem início com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, se tornando viável a partir da nidação, ou seja, quando o zigoto se fixa no endométrio.
Os que afirmam que a questão é religiosa e que o Estado não pode proibir o aborto, porque laico, deslocam o foco da discussão. A proibição do aborto não decorre da concepção religiosa de que a vida deve ser protegida porque provém de Deus, mas da constatação científica de que o feto é individualidade diferente da mãe que o gera, porque tem DNA próprio, não se confundindo com o do pai ou o da mãe.
Ao interromper uma gravidez indesejada, a mulher não está exercendo um direito próprio, mas violando o direito à vida de outrem. A concepção de que o direito de abortar decorre do direito da mulher ao próprio corpo, como exercício de direito individual de autonomia reprodutiva, está ultrapassada e somente se justificava nos limitados conhecimentos científicos do início do século passado, mas hoje não resiste às evidências científicas contemporâneas.
O direito individual de autonomia reprodutiva se exerce em momento anterior, quando o casal decide ou não conceber, fazendo uso dos métodos contraceptivos modernos, de reconhecida eficiência. Todavia, gerada a vida, deliberadamente ou não, ela não pertence à mulher, ao homem ou ao Estado.
Aqueles que sustentam que a legalização do aborto é uma questão de saúde pública também deslocam o centro da questão, no mais das vezes para esconder a incompetência administrativa da gestão da saúde.
Se efetivamente querem enfrentar a questão da saúde pública, então devem desenvolver programas de proteção à mulher, com garantia de acesso aos métodos contraceptivos seguros, ao planejamento familiar e à educação sexual. Sem isso, se pode afirmar, realmente, que o aborto é uma questão de incompetência na gestão da saúde pública.
Os juízes que já autuaram em varas de infância e juventude conhecem o calvário a que são submetidas mulheres, mães de numerosos filhos que não conseguem sustentar, que optam por fazer uma laqueadura pelo Sistema Único de Saúde. Se o Estado não é capaz de garantir acesso a uma cirurgia de tal simplicidade em tempo razoável, o que justifica o acesso ao aborto legal, se não o caráter meramente político de tal opção?
Enquanto o Estado não conseguir oferecer a essas mulheres o acesso a uma cirurgia de laqueadura em tempo razoável em vez da espera, que pode chegar a três anos; enquanto não permitir acesso verdadeiro a todos os métodos contraceptivos; enquanto não incluir a educação e o planejamento familiar entre as prioridades do governo, o discurso a favor do aborto com fundamento na questão de saúde pública é falso, porque mascara a realidade para negar o verdadeiro móvel, nascido de uma concepção política de Estado que orienta a ação de organismos internacionais e de onde provém sugestão de mudanças das normas brasileiras, nesse e noutros setores, seguindo a linha da globalização do pensar e invertendo totalmente o ideário dos defensores dos direitos humanos.
Assim como o direito individual da mulher, a incompetência administrativa não pode servir de justificativa para a violação do direito à vida, que, no Brasil, tem especial proteção constitucional, já que garantido por cláusula imodificável, e muito menos para a relativização desse direito, simplesmente porque dois erros não fazem um acerto.


HERTHA HELENA R. P. PALERMO, juíza da 4ª Vara Cível do Fórum Regional de Santo Amaro, é presidente do Ipam (Instituto Paulista de Magistrados).
JAYME MARTINS DE OLIVEIRA NETO, juiz da 13ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo (SP), é vice-presidente do Ipam.

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