São Paulo, quarta-feira, 28 de junho de 2006

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Jogo de cena

Lula e FHC trocam farpas, mas entre as suas administrações existem mais semelhanças do que gostariam de admitir

"MUDANÇA ". O discurso de posse do presidente Luiz Inácio Lula de Silva teve início precisamente nesses termos, com a palavra isolada na frase para realçar-lhe o efeito. Se à época a perspectiva soava auspiciosa, hoje sobram apenas a empostação do pronunciamento e seu travo retórico.
Tendo em vista as principais diretrizes na prática adotadas pelo governo Lula, "continuidade" seria termo bastante mais preciso. Nenhum dos pilares adotados ao longo dos oito anos da administração Fernando Henrique Cardoso foi modificado de forma substantiva. Daí que haja muito de teatral nas acusações trocadas entre ambos nos últimos dias. Trata-se de um jogo de cena em que a precisão factual importa menos do que a tentativa de forjar uma polaridade e delinear as forças em disputa.
O presidente Lula, desde o último sábado oficialmente no posto de candidato à reeleição, alvejou o antecessor ao lembrar os juros do Banco Central no ano de 1995. Teria acertado o alvo, não houvesse mirado a própria fragilidade: 11 anos depois, o país continua a praticar as taxas mais altas do planeta. A gestão petista em nada alterou a despesa inadmissível em que há anos vem incorrendo o Estado a título de remuneração de seus credores.
Em resposta, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acusou Lula de permitir a valorização excessiva do real em relação ao dólar. Faltou mencionar que a apreciação artificial do câmbio marcou o primeiro mandato do tucano e acarretou déficits recordes nas transações com o exterior e bilhões a mais em dívida pública na tentativa, vã, de sustentar aquela política.
A troca de farpas esconde uma semelhança maior do que os oponentes gostariam de admitir. FHC e Lula adotaram um modelo que conjuga juros altos e carga tributária asfixiante -sem falar dos episódios de "populismo cambial" com objetivo eleitoral que os acometeram. Ambos colheram resultados pífios na geração de emprego e de renda e no crescimento econômico.
Mesmo sob a ótica das políticas sociais -dileta bandeira petista-, semelhanças ultrapassam diferenças. Após abortar o caótico Fome Zero, Lula empenhou-se em unificar e ampliar a cobertura de programas de transferência de renda formulados durante a gestão tucana. Se os resultados parciais em termos de defesa do poder de compra dos mais pobres se mostram positivos, o ritmo de elevação do gasto público que essa política demandou será insustentável se forem mantidas as baixíssimas taxas de crescimento do país.
Apontar propostas para ajustar o modelo econômico, sanar o inchaço da máquina pública, fazer o Estado voltar a investir sem tomar mais dinheiro da sociedade e melhorar o desempenho medíocre do PIB tem ficado sistematicamente fora do horizonte político tanto de petistas como de tucanos. Por ora, a prioridade parece ser afiar o verbo, destilar veneno e ganhar a disputa apenas na retórica.


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