São Paulo, quarta-feira, 28 de junho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Momento de agir

HÉLIO BICUDO

NOS EVENTOS DOS dias que ensangüentaram São Paulo em meados de maio, convém ressaltar, de um lado, a ação de grupos criminosos que, devido à crise que consome o sistema penitenciário brasileiro, transformaram protestos muitas vezes legítimos em uma violência que atingiu as corporações policiais, com a eliminação indiscriminada de seus agentes, numa atitude que impõe adequada investigação para que se aponte à Justiça os autores dos homicídios em questão.


As famílias das pessoas assassinadas têm o direito de saber por que, onde e quando seus familiares foram mortos


De outro lado, porém, ao invés de permanecer nos devidos limites legais, passou-se à retaliação, quando policiais e grupos de extermínio -diga-se de passagem que policiais e grupos de extermínio sempre andaram juntos- eliminaram mais de uma centena de pessoas, não importa se delinqüentes, membros do PCC ou simples pessoas do povo.
A verdade é que à policia é defeso a desforra. Essa é, sem dúvida, uma atuação incompatível com as atribuições dos órgãos de segurança pública, nos limites que lhes são impostos pelo Estado Democrático de Direito.
É do noticiário geral que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo vem procurando sonegar informações e, até o presente, não publicou a lista completa dos policiais mortos e, bem assim, dos civis, repita-se, delinqüentes ou não, eliminados pela polícia.
Não se pode admitir essa omissão do Estado. As famílias das pessoas assassinadas têm o direito de saber por que, onde e quando seus familiares foram mortos e, por igual, a sociedade tem o direito de conhecer fatos que dizem respeito a seu cotidiano. Esses são direitos insofismáveis e, mais do que isso, inalienáveis.
Entretanto, convém assinalar que deixar em mãos dos órgãos policiais -e lembre-se que o IML está sob o comando da Secretaria de Segurança- a investigação dos fatos que vimos assinalando é concordar com a impunidade, pois a polícia jamais irá investigar para apurar delitos cometidos por ela própria.
É certo que o Ministério Público de São Paulo, dentro dos meios de que dispõe, pode encaminhar essas investigações tendo em vista a descoberta do que se costuma chamar de verdade real. Mas também é certo que a polícia estadual deve ser afastada, por inteiro, dessas investigações, sendo substituída pela Polícia Federal.
Ao invés de propor a presença das Forças Armadas para restabelecer a ordem, medida que seria inconstitucional, o governo federal deve assumir as investigações nos termos da Lei Federal nš 10.446, de 2002, que prevê a atuação da Polícia Federal para apurar infrações graves a direitos humanos que tenham tido repercussão interestadual ou internacional.
Nem se argumente em contrário que o Brasil é uma Federação e, como tal, a União não poderia violar a autonomia dos Estados. Ora, a Constituição prevê que a União intervirá nos Estados para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública" e para assegurar, dentre outros, o princípio constitucional que impõe o respeito dos direitos da pessoa humana (cf. artigo 34, III e VII letra "b").
Com o devido respaldo constitucional e legal, a União está obrigada a intervir para que, mais uma vez, não prevaleça o arbítrio de órgãos governamentais ligados à segurança pública e, em decorrência, se acalente a impunidade.
Os fatos de maio, é evidente, não podem ficar impunes, mas, sem dúvida, estão a merecer uma reflexão do Estado brasileiro, para que volte suas vistas para problemas que têm sido relegados ao descaso ou pessimamente equacionados e que são fundamentais para o bem estar do povo, como os sistemas penitenciário, judiciário e policial.
HÉLIO BICUDO , 83, é advogado e jornalista. Foi vice-prefeito do município de São Paulo (gestão Marta Suplicy), deputado federal pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98) e presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). É autor de "Meu Depoimento sobre o Esquadrão da Morte", entre outros livros.


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