São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O novo papel das ciências humanas

JACQUES MARCOVITCH

A greve na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP já foi objeto de variadas reflexões. Poucas enfatizaram a urgência de repensar o papel das humanidades. Esta é a questão chave. E o lugar de partida para o novo projeto deve ser a própria faculdade em crise.
Além de equacionar o problema tópico em debate, que é a contratação de professores, há que redefinir a missão das ciências humanas. Não se trata de restringir, mas de ampliar essa missão. Muitas vozes no mundo acadêmico abordam ângulos diversos do tema. Alec Broers, reitor de Cambridge, afirma que o maior desafio nas universidades americanas é restabelecer o equilíbrio de financiamento entre as humanidades e a área de exatas e biológicas.
A construção de uma visão de futuro decorre do repensar das humanidades à luz da contemporaneidade. E há uma etapa, nesse processo, que alguns subestimam: a correta estruturação de um projeto, com rígidos cronogramas a cumprir. As ciências humanas são em geral desestruturadoras, no justo sentido de que devem sempre desestruturar o estabelecido e buscar os novos caminhos do pensamento. Como dizia Goethe, "o mundo só pode ir em frente por meio daqueles que se opõem a ele".
Não é correto, porém, ampliar este conceito a ponto de não estruturar nada, inclusive projetos que trazem recursos e fortalecem o campo acadêmico em que se vão desenvolver.
Octavio Ianni já disse que a globalização, a despeito de todos os seus males, enseja uma espécie de renascimento das humanidades. Para ele, até mesmo a interpretação do passado, iluminada por uma nova luz, pode ser revista. As alterações na história recente foram tamanhas que se estabeleceram novos nexos entre o passado, o presente e o futuro. Lembro-me de uma ousada proposta de curso interdisciplinar de graduação na FFLCH, formulada pelo professor Renato Janine Ribeiro, que enfrentou resistências naquela unidade. Talvez seja este o momento de inseri-la no corpo do projeto maior aqui reclamado.


Há que redefinir a missão das ciências humanas. Não se trata de restringir, mas de ampliar essa missão


A FFLCH precisa encontrar meios de reforçar o seu poder transformador. Não se pode negar a relevância de estudos já desenvolvidos ali, mas é necessário buscar o renascimento lembrado também por Michel Serres. Na percepção deste filósofo, a morte das humanidades condenaria o homem ao tempo imediato. Ele sugere um humanismo universalizado, que tenha por base todas as culturas humanas, hoje acessíveis e em comunicação permanente. A formação das novas gerações muito se beneficiaria de um conhecimento comum e integrador das ciências e do mosaico de culturas existentes. Isso revelaria saberes e valores imprescindíveis na travessia dos tempos futuros.
Filósofos, historiadores, sociólogos e outros especialistas que têm a academia como espaço quase único de trabalho podem e devem interpretar o mundo contemporâneo e reinventar o Estado, para um equacionamento mais generoso de políticas públicas. Se essa elite intelectual, vocacionada para o estudo de problemas sociais, não decifrar o chamado "enigma Brasil", quem o fará?
A disjunção entre cultura, ciência e tecnologia traz prejuízos para os três setores. O mundo cambiante de hoje, com suas perdas e ganhos, exige um modelo educacional flexível, sem absolutismos. Requer complementaridades e uma educação plena, que oriente os jovens em seus projetos de vida e consolide valores de cidadania. Nenhuma área reúne habilidades mais eficazes para isso do que a área das ciências humanas. Cabe-lhe achar a ética do futuro e impor os limites necessários ao processo de globalização.
Mas, nessa urgente redefinição de atitude, é indispensável um projeto que alargue e revigore o seu espaço no universo da pesquisa.


Jacques Marcovitch, 55, professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-reitor da universidade, é secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo e autor dos livros "A Universidade (Im) possível" (Editora Futura/Siciliano) e "Universidade Viva" (Mandarim).



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