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DEMÉTRIO MAGNOLI
A ética de Lula
e a nossa
"Neste país está para nascer alguém que queira discutir ética
comigo. Sou filho de pai e mãe analfabetos. O único legado que eles me deixaram é que andar de cabeça erguida é
a coisa mais importante. Não vai ser a
elite que vai fazer eu abaixar a minha
cabeça."
Apesar da retórica, a ética pessoal de
Lula não sai bem na foto da estratégia
de imolação de seus fiéis companheiros que, segundo indícios veementes e
nas palavras de José Dirceu, agiram
com o "conhecimento e consentimento" do presidente. Meus pais, que têm
educação superior, ensinaram-me
quando criança a não deixar os colegas pagarem sozinhos por nossas travessuras coletivas. Os pais de Lula,
analfabetos, provavelmente ensinaram-lhe a mesma coisa, e não têm culpa se o filho não aprendeu ou esqueceu. Mas isso é quase irrelevante na
crise atual, que gira em torno da ética
política, não da ética pessoal.
A distinção não ocorre a Lula, mas é
crucial: a ética política, tal como entendida nas sociedades contemporâneas, nasce de um longo percurso histórico de separação entre as esferas
pública e privada. Raymundo Faoro,
no clássico "Os Donos do Poder", encontrou no Estado patrimonial português as raízes do comportamento da
elite política brasileira. Sob a lógica patrimonial, a coisa pública é uma extensão da propriedade territorial privada
e a elite dirigente é um "patronato político", que "conquista a confiança popular e lhe infunde, de cima, a representação arbitral de interesses comuns". Nesse quadro, que é o avesso
das noções de contrato político e cidadania, a ética política confunde-se
com a ética pessoal, valoriza a lealdade
e o compadrio, admite o uso da máquina estatal para finalidades privadas. Essas são, até hoje, as fontes da
corrupção sistêmica no Estado brasileiro.
Lula encarna a tradição do patronato político brasileiro. Vezes sem conta,
o presidente definiu a nação pela metáfora da família, na qual ele desempenha o papel de pai provedor, governando com o coração e zelando por
todos os filhos, sobretudo os mais fracos. Governar é distribuir privilégios
seletivamente: eis o conceito arcaico
que emana do pensamento do presidente. Em setembro de 1999, Lula denunciou o Bolsa-Escola de FHC, precursor do seu Bolsa-Família, sob o argumento de que "o povo não quer migalha, nem cesta básica, nem esmola".
Desde a posse, o traço característico
de seu governo não está em iniciativas
de cunho universal, mas nos programas preferenciais, como o Bolsa-Família, as bolsas do Prouni, as cotas
universitárias, o crédito consignado.
Esses "mensalinhos dos pobres" têm
como contrapartida o "mensalão" dos
políticos, também destinado a acomodar tensões, comprar consciências e
angariar apoios.
O pensamento de Lula não se circunscreve ao arcaísmo, mas incorpora
o componente mais moderno do salvacionismo. O tema do líder providencial, fundador de uma nova história e de uma nova nação, percorre os
seus discursos. Atrás dele, espreita
uma noção de destino nacional, de
grandeza e redenção, que serviria como justificativa para todos os atos presidenciais. O empuxo messiânico fornece consistência àquilo que pareceria
apenas paradoxal: o presidente que
denuncia ao povo a conspiração de
"elites" nunca definidas e, ao mesmo
tempo, nomeia ministros os protegidos dos presidentes da Câmara e do
Senado para transformar o governo
num bunker contra a hipótese do impeachment.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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