São Paulo, quarta-feira, 28 de agosto de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Grandes assimetrias do poder mundial

GILBERTO DUPAS

Enquanto as nações, por meio de seus costumes e leis, tentam utilizar valores e crenças para ordenar as paixões humanas, as relações internacionais são ainda o espaço predominante das relações de força e do imperativo do poder. Os países dominantes praticam, com mais ou menos sutileza, o "quem pode manda, quem tem juízo obedece".
Um realista como Jean de la Fontaine fazia o lobo perguntar ao cordeiro por que sujava a água que ele bebia. De nada adiantava que o pobre animal lembrasse que a água corria da fera para ele. Ou que protestasse não ser possível ter falado mal do lobo no passado se ainda nem era nascido. "Não foi você? Então foi teu pai ou teu avô" -ruminava ele, enquanto o devorava. Um cínico como Stalin, diante dos reclamos do pontífice, perguntava: "Quantas divisões de combate tem o papa?".
São infindáveis as marcas indeléveis no inconsciente coletivo que informam sobre o peso do poder nas relações entre pessoas e entidades. E é por isso que a humanidade sempre acalentou a esperança de que a funda de Davi um dia abatesse Golias.
Deixando de lado, por um momento, quão hobbesianas ou grocianas são as relações entre os povos -e o quanto é eficaz a diplomacia no seu papel de fazer a "guerra por outros meios"-, investiguemos como vão as assimetrias de poder no mundo global.
Uma maneira razoável de analisar essa questão continua sendo comparar os países por seu PIB (produto interno bruto), ou seja, pelo total de riqueza gerada em cada um deles. Afinal, o PIB, além de uma expressão do poder econômico, costuma medir também dominância nos fluxos de comércio mundial, capacidade de desenvolvimento tecnológico e poder militar.
Basta lembrar que, atualmente, a Rússia detém um PIB de apenas US$ 330 bilhões e, há duras penas, usa 10% dele com despesas militares. Já os EUA têm um PIB de US$ 11 trilhões e podem se dar ao luxo de gastar anualmente só 3% dele para ter um orçamento militar igual a todo o PIB russo. Assim, habilitam-se a ser o único país que, hoje, pode conduzir com autonomia uma guerra em qualquer parte do mundo.
Vamos continuar a análise com o que chamo de "grandes países centrais".
Os EUA sozinhos têm 32% do PIB mundial. Se juntarmos a ele Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália temos seis países do mundo concentrando sozinhos 64% da riqueza e do poder mundiais, e com uma renda média per capita (medida pelo conceito de "Purchase Power Parity" do Banco Mundial) de US$ 26 mil anuais.


Essa imensa concentração de poder não significa necessariamente um exercício permanente de dominação


Os países que classifico a seguir também são ricos (os de PPP superior a 19 mil anuais), mas menores. Entre essas 11 nações estão Canadá, Espanha, Austrália, Holanda e Áustria. Elas perfazem 10% do PIB mundial, usufruídos por apenas 3% da população do planeta.
Em seguida temos o bloco dos "grandes países da periferia". Cada um deles tem mais de US$ 120 bilhões de PIB e sua população é superior a 25 milhões de habitantes. São eles China, Brasil, México, Coréia do Sul, Índia, Argentina, Rússia, Turquia, Polônia, Indonésia, África do Sul e Tailândia. Respondem por outros 14% da riqueza mundial, com 53% da população total. A renda per capita média deles, ponderada pela população, é de US$ 4.487 anuais.
Resta a enorme maioria de 176 países que, com algumas exceções, como Chile e Venezuela, é a ampla periferia do poder mundial e detém, todos juntos, apenas 10% da riqueza mundial, com 33% de sua população. Eles são relativamente irrelevantes para a lógica do poder mundial e concentram enorme miséria. Para a grande maioria deles, o mundo global não tem nenhuma palavra de consolo. Eles entram em sua agenda só quando são produtores de drogas, sede de grupos terroristas ou estão submetidos a uma situação grave de genocídio.
É claro que essa imensa concentração de poder não significa necessariamente um exercício permanente de dominação. Até porque a experiência histórica do exercício de hegemonia implica a condição de o país ou grupo de países hegemônico ser percebido pelo sistema de nações como adotando um discurso e uma prática que beneficiem minimamente os outros. Se isso não ocorrer, hegemonia transforma-se em tirania.
Felizmente, parece que o mundo global é hoje muito complicado e cheio de contradições para se dar a esse luxo macabro de manter uma situação imperial e tirana por muito tempo.
É disso que nos fala Joseph Nye, com sua metáfora sobre o jogo de xadrez do poder mundial em três níveis. É no terceiro tabuleiro -que não é do poder militar nem do econômico convencionais- que podem ocorrer lances decisivos para abalar a arrogância imperial. Lá estão organizações da sociedade civil, empresas, traficantes, pacifistas, terroristas, parte da mídia independente, intelectuais e outras forças complexas, dinâmicas e razoavelmente autônomas.
A tecnologia da informação, desenvolvida nos dois primeiros tabuleiros, mas socializada pela própria lógica da globalização, garante a esses atores instrumentos poderosos que podem se voltar brutalmente contra seus criadores. Haja visto a tragédia do WTC.
Apesar de todos os imensos avanços na ciência e na tecnologia, somos parte de um mundo cruel e injusto, onde a solidariedade é escassa e viver continua sendo um grande risco.


Gilberto Dupas, 59, economista, coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional, da USP, é presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e autor, entre outras obras, de "Hegemonia, Estado e Governabilidade" (Senac).



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