São Paulo, Terça-feira, 28 de Setembro de 1999
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Sífilis, descobrimentos e comemorações


Deve o português competir com outros povos europeus para saber quem foi melhor colonizador?


BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Ao tempo em que Garcia da Orta publicou o "Colóquio dos Simples e das Drogas da Índia" (Goa, 1563), uma das questões mais debatidas era a origem da sífilis. Orta menciona, sem tomar posição, a opinião dos que consideravam a doença como nova e a supunham importada da América.
Segundo o conde de Ficalho, na edição anotada dos "Colóquios", de 1895, os fatos que pretensamente fundavam essa opinião eram os seguintes: os companheiros de Cristóvão Colombo haviam regressado no ano de 1494 da sua segunda viagem à Espanhola contaminados por um novo e grave mal, adquirido ali no contato com as mulheres indígenas; por esse mesmo tempo, Carlos 8º da França invadia a Itália, atravessando-a de norte a sul e cercando Nápoles, onde se refugiara Fernando 2º; no ano seguinte, os reis católicos enviavam, em socorro de Fernando 2º, uma armada comandada por Gonçalo de Córdoba; foi então que os soldados espanhóis infectados comunicaram o mal a algumas "mulheres públicas", e estas aos italianos e também aos franceses do exército invasor, os quais, no seu regresso, o trouxeram para França, espalhando-o por toda a Europa.
Como ninguém queria assumir a responsabilidade pela "nova e repugnante enfermidade", chamavam-lhe morbo napolitano por ter começado em Nápoles, morbo gálico por se ter generalizado por intermédio dos franceses e morbo hispânico (ou sarna castelhana, como a designa Garcia da Orta) por se ter espalhado primeiro entre os espanhóis. E também foi chamada mal dos turcos pelos cristãos e "mal franzozo" pelos muçulmanos. Nenhuma dessas designações, porém, punha em causa a origem americana da doença. Aliás, muitos anos depois, no "Cândido", de Voltaire, o dr. Pangloss, fazendo a picaresca genealogia da doença que o tinha deixado às portas da morte, diz que o primeiro da série a havia pego em linha direta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Como não deixa de notar o circunspecto conde de Ficalho, essa insistência na origem americana da doença se chocava com os fatos, dado que "em muitos livros correntes de medicina se podem encontrar numerosas citações, pelas quais se vê bem como a sífilis existia no Velho Mundo de antigos tempos, embora houvesse nos fins do século 15 uma recrudescência de gravidade e frequência daquela enfermidade".
O discurso quinhentista sobre a sífilis simboliza a concepção moderna da descoberta como designação da diferença e da diferença como designação de distância e de hierarquia. A medida de repugnância da doença afere-se pela distância que separa os enfermos dos primeiros causadores da enfermidade, os índios americanos. Essa medida extrema é depois aplicada, em miniatura, à distância que separa os franceses dos italianos, os portugueses dos espanhóis, os cristãos dos muçulmanos. Em qualquer dos casos, designar significa distanciar e subordinar -em graus variáveis, segundo a reciprocidade hermenêutica admissível. No limite, a sífilis, enquanto descoberta quinhentista, é a medida de uma enfermidade que estabelece a incomensurabilidade entre enfermos.
Contudo existe uma diferença radical entre descobrir um território e descobrir um ser humano: descobrir um ser humano implica reciprocidade. Quem descobre é descoberto. Se por qualquer razão essa reciprocidade é negada ou ocultada, o ato de descobrir, sem deixar de o ser, torna-se simultaneamente um ato de encobrir. A negação ou ocultação da reciprocidade assenta sempre no poder de negar ou ocultar a humanidade de quem é descoberto. Só assim é possível descobrir sem se descobrir, pôr a nu sem se pôr a nu, identificar sem se identificar, encontrar sem se encontrar, ver sem se ver. A modernidade é uma vasta tela de reciprocidades negadas: entre o sujeito e o objeto, entre a natureza e o homem, entre o civilizado e o selvagem, entre o sagrado e o profano, entre o indivíduo e o Estado, entre o patrão e o operário, entre o homem e a mulher, entre jovens e velhos. Os descobrimentos de Quinhentos são como que a metáfora fundadora da negação moderna de reciprocidade. São, pois, tão decisivos como descobrimentos quanto como encobrimentos. O colonialismo é a literalização da metáfora.
Com a aproximação da celebração dos 500 anos da Descoberta do Brasil volta à atualidade um tema velho: a natureza do colonialismo português e o seu impacto nas relações luso-brasileiras. No passado, existiram a esse respeito duas teorias principais. A primeira é que o colonialismo português foi um colonialismo benigno, já que os portugueses, desprovidos de orgulho racial, se adaptaram aos trópicos melhor que nenhum outro povo europeu, promoveram a miscigenação das raças -de que o mulato e a mulata são o mais exaltante resultado- e dissolveram a sua cultura no contato com as culturas africana e ameríndia, dando origem a novas culturas híbridas de grande complexidade e riqueza. Implícito ou explícito nessa teoria é que o colonialismo português foi melhor que os outros colonialismos, nomeadamente o anglo-saxônico.
A segunda teoria sustenta, pelo contrário, que o colonialismo português foi pior que os outros colonialismos europeus porque os portugueses, menos cultos e mais dados à aventura que ao trabalho, não souberam desenvolver as suas colônias nem enraizar nelas os valores do individualismo, da liberdade e da democracia que estão na base dos Estados modernos. Segundo essa teoria, o que de melhor tem hoje o Brasil deve-se aos índios, aos negros e aos imigrantes de outros países europeus e asiáticos.
O modo como decorrerem as comemorações será indicativo do estatuto dessas teorias no senso comum: qual prevalece? Estão ambas superadas? Esse senso comum é, no melhor dos casos, o senso comum dos políticos que promovem e orientam as comemorações. Se o senso comum não tiver superado essas teorias, é bem possível que a sífilis colonial venha a infestar as comemorações: morbo lusitano? Morbo brasílico? Há, contudo, uma razão para otimismo. No mundo científico luso-brasileiro essas duas teorias estão (definitivamente?) superadas. Por razões nada misteriosas ou míticas sabemos hoje que o colonialismo português foi muito diferente do anglo-saxônico ou holandês. Sabemos também que não foi, por isso, melhor ou pior que o anglo-saxônico ou holandês.
Aliás, todo o colonialismo foi mau e só uma ideologia histórica dominada pela idéia do progresso permite justificá-lo nos termos dúbios de que os fins justificam os meios. Se durante muito tempo o colonialismo português foi considerado inferior ao anglo-saxônico, foi apenas porque a partir do século 17 a história do colonialismo europeu foi escrita em inglês e não em português. Em grande medida, foi por reação a isso que já no nosso século surgiu a idéia da superioridade do colonialismo português de que Gilberto Freyre foi o grande arauto. Razão tem, pois, Alfredo Bosi quando pergunta: deve o estudioso brasileiro competir com os outros povos irmãos para saber quem foi mais bem colonizado? E eu acrescento: deve o estudioso português competir com outros povos europeus para saber quem foi melhor colonizador? A ambas as perguntas a resposta é um firme não.


Boaventura de Sousa Santos, 58, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).



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