São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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Entre o ruim e o horrendo


Os males da liberalização das drogas são menores que os da sua proibição


RUBEM ALVES

Diz a psicanálise que quando um impulso consciente é proibido de se expressar e reprimido ele não desaparece. A agência repressora, o superego, não tem poder para matá-lo. Pode proibir sua aparição pública, mas não consegue destruí-lo. Que acontece, então, com os impulsos proibidos? Eles passam a existir na clandestinidade. E é desse lugar clandestino, invisível, que eles burlam as ordens do superego e fazem seus ataques.
As leis da vida social são idênticas. Quando algum impulso se manifesta como lesivo à sociedade, uma instância repressora, a lei, determina que ele seja banido. Mas, tal como acontece com a alma, os impulsos sociais reprimidos não deixam de existir. Simplesmente assumem um novo tipo de existência: tornam-se igualmente clandestinos. E protegidos pela clandestinidade burlam a lei e fazem seus ataques.
No dia 1/1/1919 foi aprovada, pelo Congresso dos EUA, uma lei que proibia a fabricação, a distribuição e o consumo de bebidas alcoólicas. Essa lei foi o resultado de um longo processo de análise dos efeitos destruidores do álcool sobre a vida social. Havia, em primeiro lugar, a condenação vinda da tradição religiosa puritana, para a qual a bebida e a embriaguez eram obra do demônio. Havia, em seguida, os fatos sobre os efeitos da bebida: alcoolismo, incapacidade para o trabalho, crimes, doenças. Era óbvio que a sociedade seria beneficiada se as bebidas alcoólicas fossem banidas. As pessoas se tornariam mais racionais, agiriam na posse plena de suas faculdades mentais, teriam condições para controlar seus impulsos destruidores e a vida social melhoraria. Sem álcool haveria mais progresso e mais harmonia. Aprovou-se, assim, a Lei Seca, e tomaram-se as providências para que ela fosse cumprida. Os EUA seriam um país sóbrio.
Mas o resultado da Lei Seca foi o oposto do que os bem-intencionados legisladores dos EUA haviam imaginado. Sua intenção consciente foi abortada pela simples razão de que um mercado não pode ser abolido pela força de uma lei. Na clandestinidade, o mercado de bebidas alcoólicas floresceu e criou um monstro que os legisladores jamais haviam imaginado: um império gigantesco de dinheiro, crimes, corrupção, que se infiltrava em todos os setores da vida pública, tornando-se num verdadeiro Estado dentro do Estado. Foi o período áureo da Máfia.
Comentando esse fato, o sociólogo Robert K. Merton observou: "Quando a reforma política se restringe à tarefa de "pegar os bandidos" ela não passa de um ritual mágico". Realidades não se abolem com proibições. As proibições apenas deslocam os seus lugares. Se as demandas existem, não é possível eliminá-las por meio de uma lei. Existindo demandas, elas encontrarão formas de ser satisfeitas. Em 5/12/1933 a Lei Seca foi abolida. Os legisladores aprenderam a lição: o livre comércio das bebidas, por danoso que fosse, era incomparavelmente menos danoso que o que acontece quando ele é reprimido.
Isso tudo a propósito da CPI que corajosamente se entrega à necessária tarefa de "pegar os bandidos". Mas a lição da sociologia é outra: enquanto o comércio das drogas for proibido ele existirá na clandestinidade. Assentada a poeira, da clandestinidade novos Hildebrandos surgirão, novas quadrilhas, novas formas de crime, novas infiltrações na política, nas empresas e na polícia. Por uma razão simples: é muito dinheiro envolvido. E pelo dinheiro os homens fazem qualquer coisa.
Os legisladores norte-americanos pensavam que estavam decidindo entre o bem e o mal: bebida alcoólica é mal, abstinência é bem. Assim, por meio de um decreto eliminariam o mal e estabeleceriam o bem. Infelizmente essa alternativa não existe. Frequentemente as decisões a serem tomadas nos colocam diante das alternativas ruim e horrendo. Estamos, assim, diante da seguinte situação:
1) As drogas existem, há para elas um mercado imenso que movimenta milhões ou bilhões de dólares.
2) Não é possível eliminar esse mercado. Primeiro, pela demanda. Segundo, pelo dinheiro em jogo.
3) Encontramo-nos diante de duas alternativas. Primeira: as drogas simplesmente liberadas, com todos os seus males, à semelhança do que acontece com bebidas alcoólicas e cigarros. Segunda: as drogas e seu mercado proibidos legalmente, mas existindo na clandestinidade, com todas as suas florações de crime e corrupção. A primeira alternativa é muito ruim. A segunda é horrenda.
4) Se é verdade que o mercado das drogas não pode ser eliminado por meio de repressão, é verdade que as consequências da sua proibição podem. Basta que elas sejam tiradas da clandestinidade. Concluo, assim, que os males da liberalização das drogas são menores que os da sua proibição.
Não gosto dessa conclusão. Mas sou obrigado a considerá-la. Sei que ela faz estremecer muitas pessoas. Mas tais pessoas deveriam considerar o que acontece com a produção e o comércio livre de bebidas e fumo. Não tenho dados estatísticos. Mas tenho a impressão de que, quantitativamente, os danos da bebida, no Brasil, em termos de crimes, violência, desastres automobilísticos, doenças, são maiores que os danos das drogas. O fumo é também droga mortal. Só que seus efeitos são retardados e ninguém leva a sério as advertências do Ministério da Saúde...
As drogas, liberadas, são um mal pessoal, médico, psicológico. Não liberadas, são um mal pessoal, médico, psicológico, acrescido de crime e da corrupção da vida pública.

Adolescentes foram pegos fumando um baseado. Conduzidos à delegacia, levaram uns tapas no rosto. Seus pais foram chamados. A proposta desavergonhada dos policiais: ou pagam R$ 5.000 ou os filhos serão enquadrados na lei. Todos os pais pagaram. Por que não denunciaram? Porque a denúncia equivaleria a uma confissão do "crime" do filho. Não me agrada a idéia dos jovens como "reféns" permanentes dos policiais. Esse foi um incidente mínimo cotidiano, rotineiro, um pingo d'água no oceano de corrupção criado pela proibição das drogas.


Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Entre a Ciência e a Sapiência: o Dilema da Educação" (Edições Loyola), entre outras obras.




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