São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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O instrumento da violência


Controle eficiente significa a imposição de condições rígidas para a aquisição de uma arma


RUI CESAR MELO

A morte de três pessoas dentro de um cinema reacendeu a discussão acerca da expansão da violência, de sua nova forma, desprovida de conteúdo motivacional compreensível, e da utilização de armas de fogo para a execução de propósitos destruidores.
Sem entrar de forma acadêmica na tematização da violência, mas buscando oferecer pequeno aporte teórico que permita a compreensão superficial desse fenômeno, torna-se necessário enfatizar que, diferentemente do que ocorre com animais, em que o comportamento violento é mediado por uma agressividade instintiva e dominada por necessidades, para o ser humano o comportamento violento é manifestação de uma ação destrutiva, que traz consigo a marca de um desejo. Na expressão de Jurandir Freire Costa, "violência é o emprego desejado da agressividade com fins destrutivos".
Assim, os atos de violência a que assistimos nas relações cotidianas não têm o sentido de irracionalidade animalesca que muitos lhes querem dar, mas, bem ao contrário, trazem um pressuposto absolutamente humano: o "querer fazer". Impensável alguém, irracionalmente impulsionado, engendrar todas as condutas adotadas pelo estudante de medicina até chegar à realização de sua intenção. A análise lógica leva à conclusão de que todo o processo foi fruto de cuidadoso planejamento, mesmo se constatada uma eventual doença mental. James Wygand, executivo de uma multinacional especializada na análise de riscos, afirmou que "daqui para a frente, haverá predadores como o rapaz do cinema em nosso meio. Por razões pessoais ou sociais, mas ninguém pode fingir que isso não existe".
Nesse sentido, a diminuição do armamento posto à disposição daqueles dispostos a atos violentos seria, sem dúvida, importante fator de contenção de condutas motivadas ou desmotivadas. Por certo que a proibição singela da comercialização de armas de fogo não teria a consequência mágica de evitar que elas chegassem às mãos ávidas de pessoas transgressivas, já que isso se daria por meio do mercado clandestino de armas furtadas, roubadas ou contrabandeadas, mas significaria boa redução de oferta. No entanto, mais do que pensar em proibir, talvez seja essencial pensar em controlar.
Controle eficiente significa a imposição de condições rígidas para a aquisição de uma arma, que incluem necessariamente rigoroso exame psicológico, buscando conhecer as tendências do candidato a comprador. Controle eficiente significa aprimoramento da vigilância nas áreas de fronteira, nos portos e aeroportos. Implica ainda a necessária adequação da legislação, para que o porte ilegal de armas tenha tratamento penal contundente.
Há países em que o porte de uma faca sujeita o agente ao cumprimento de uma pena de dois anos de prisão, enquanto o porte de uma arma de fogo eleva essa pena para seis anos. No Brasil, a lei 9.437/97 estabeleceu pena de detenção de um a dois anos para o porte e de reclusão de dois a quatro anos para o porte de armamento restrito e para adulteração das características de uma arma. Perceba-se que é a alteração, e não o porte de arma adulterada que determina a elevação da pena. Aqueles que são presos portando arma com numeração raspada e que alegam que já a adquiriram dessa forma (terceiros de boa-fé?) não são atingidos pela qualificadora do crime, já que merecem o benefício da dúvida, podendo inclusive se ver livres da prisão em flagrante pelo pagamento de pequena fiança. Além disso, a pena cominada para o porte parece não ter sido suficiente para inibir a conduta.
Enfim, condições rígidas de autorização para compra, com controles efetivos, destruição rápida de armas irregulares apreendidas para evitar o seu retorno às ruas e alteração legal que aumente a pena para o porte de armas e, especialmente, para o porte de armas adulteradas talvez sejam a solução alternativa à proibição geral de venda, como elemento de controle da expansão da violência, respeitando, assim, o direito individual à própria segurança pela posse do armamento, mas, acima de tudo, o interesse coletivo de não ver instrumentos de destruição nas mãos de quem ainda não foi tocado pelos fundamentos da civilização.
Rui Cesar Melo, 48, coronel da PM, é comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo.


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