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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Bandeira rota

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Querido irmão Sobel, foi reconfortante saber que você reafirmou seu repúdio à pena da morte. Sua coragem e humildade em rever uma tomada de posição num momento de emoção foi de grande dignidade. Você está na esteira daqueles que, desde as trevas da ditadura até a transição política e a democracia, têm testemunhado serenidade e esperança diante do medo.
Desde os anos 70, com sua corajosa posição depois do assassinato de Vladimir Herzog pela ditadura militar, você tem sido referência incontornável, com o dom da ubiquidade em todas as frentes de luta pelos direitos. Foi uma bela notícia justamente na semana em que a Comissão Teotônio Vilela, fundada por Severo Gomes, comemora 20 anos no Memorial da América Latina, com a presença do ministro Nilmário Miranda -o que acontecerá hoje.
A ditadura militar, para ter as mãos livres para torturar, sequestrar e assassinar, não ratificou a Convenção Americana de São José da Costa Rica, de 1969. Finalmente, na gestão do chanceler Celso Lafer, em 1992, essa convenção foi ratificada. Nela fica determinado que os países que não tinham pena de morte no momento da ratificação somente podem introduzi-la com a denúncia da convenção. Até o momento, o único regime do continente que tentou fazer isso foi a ditadura de Fujimori, no Peru. Tenho certeza de que o presidente Lula não assumirá o vexame internacional de denunciar a convenção.
Defender a pena capital é assumir uma bandeira cada vez mais rota. A pena de morte não tem nenhum efeito dissuasório para os criminosos, como bem lembrou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e cada vez mais é abolida nas democracias. Nos EUA, o número de execuções tem decaído profundamente; em muitos Estados há moratórias em relação a execuções, com revisão de processos concluindo pelo erro de julgamento. Ali ficou demonstrado que as sentenças de execução se abatem sobre os sem-poder, os negros, os pobres, sem defesa legal eficiente (são comuns os casos de advogados que conheceram seus clientes no momento do julgamento ou advogados bêbados em pleno tribunal).
No Brasil, o professor Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, demonstrou que os afrodescendentes nos EUA recebem penas mais severas do que os brancos por crimes iguais. Não é preciso muito esforço para adivinhar quem seriam os pilotos de prova da pena de morte.
Não podemos reagir a cada tragédia propondo o inaceitável, o indizível, o inefável. Não há palavra, gesto que consiga aplacar a dor de pais, mães, irmãos, avós que perderam seus familiares assassinados. Você conhece a tragédia das mães da periferia de São Paulo, das favelas do Rio, dos bairros populares de Recife, cujos filhos morrem como moscas todo dia -mortes tão banalizadas que o noticiário passa ao largo-, sem que sejamos capazes de uma solidariedade militante com essas famílias. Mas a resposta não está na lei de Talião: olho por olho, dente por dente.



Não é preciso muito esforço para adivinhar quem seriam os pilotos de prova da pena de morte

O "Mapa da Violência", preparado pela Unesco e o governo brasileiro, diz-nos que a taxa de morte por homicídios na faixa de 15 a 24 anos em 2000 era de 39%, comparada a 4% para toda a população. Nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, as taxas de homicídio daqueles jovens eram superiores a 50%. No Rio de Janeiro e em Pernambuco, as taxas de homicídio de jovens em 2000 foi superior a 100 por 100.000 habitantes, enquanto a taxa nacional de homicídio é de 25 por 100.000.
Chegou o momento, meu irmão Sobel, de despejarmos também nossa fúria contra os responsáveis maiores pela morte desses jovens. Proponho a você alguns: primeiro, a multinacional Taurus-Rossi e a Companhia Brasileira de Cartuchos, que estão mais preocupadas com seus lucros do que com a vida dos brasileiros. Entre 1991 e 2000, as taxas de homicídio com armas de fogo foram, no Rio de Janeiro, de 77,8%, e em São Paulo, de 89,8%. Em todo o Brasil, 82,2% das mortes foram por armas de fogo; em São Paulo, a cada três minutos é apreendida uma arma.
O lobby desses mercadores da morte financiou campanhas de parlamentares que criam obstáculos a qualquer projeto de não-comercialização desses instrumentos da morte. Outros parlamentares produzem espasmodicamente legislação penal oportunista, incapaz de ter algum efeito de proteção relevante dos cidadãos. Por isso o sistema criminal brasileiro está submetido a uma choldra de leis penais ineficazes. Agora mesmo volta outro tema roto, a diminuição da idade penal, comprovando a incompetência de adultos e governantes para lidarem com alguns milhares de crianças e jovens infratores, como afirmou na Presidência Fernando Henrique. Tenho certeza de que o presidente Lula garantirá, como fez seu antecessor, o veto para qualquer projeto que proponha rebaixar a idade penal.
O Congresso Nacional até hoje foi incapaz de reformar a estrutura judiciária ou o sistema de segurança pública ineficiente, com baixíssima capacidade de investigação de crimes, engendrado pela ditadura militar. Os governantes, 15 anos depois da volta ao regime constitucional, por incompetência ou incúria, não conseguem debelar a corrupção e a banda podre dos aparelhos do Estado (vide Operação Anaconda). Não desmantelam a coluna vertebral do crime organizado, como o jogo do bicho (que financia campanhas eleitorais) ou o narcotráfico, o contrabando, a lavagem de dinheiro. Os orçamentos se multiplicam e o rendimento das políticas de segurança pública continua pífio.
Está na hora de, além de bradar com você pelo processo e castigo dos criminosos, enfrentar olho no olho os principais culpados pelo desespero atual e responsabilizá-los pelo sangue dos jovens, pela profunda dor de tantos pais e mães neste triste país assolado pelo medo.

Paulo Sérgio Pinheiro, 59, é expert independente das Nações Unidas para a Violência contra a Criança. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos (governo Fernando Henrique).


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