São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Celso Furtado e a América Latina

RICARDO LAGOS

A notícia da morte de Celso Furtado nos chegou no meio de um momento especialmente histórico de nossa política externa: quando acontecia no Chile a cúpula do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, o Apec. Ou seja, recebemos a notícia no meio de uma discussão crucial sobre o desenvolvimento econômico no século 21.
Foi num pequeno apartamento em Paris, em 1981, quando eu fazia alguns trabalhos no Centro para o Desenvolvimento da OCDE, que tive o privilégio de ter algumas conversas com Celso Furtado. Com certeza eu lhe fiz mais perguntas do que dei respostas, e ele mais respondeu do que perguntou.
Suas análises tinham sido profundamente convincentes para aqueles entre nós que, no início dos anos 60, abriam caminho para a busca profunda por o que significávamos como continente e como latino-americanos. Ele não foi o único, mas foi essencial para todos nós conhecer seu pensamento, em artigos, conferências e análises que culminariam com um de seus livros mais brilhantes: "A Economia Latino-americana". Com a mesma energia que aplicou para compreender o Brasil do pós-guerra, Celso Furtado trabalhou por uma visão de conjunto para compreender os aspectos profundos do subdesenvolvimento na América Latina. Nunca hesitou em construir essa visão latino-americana, em abranger a diversidade histórica do continente, para ali encontrar as tendências comuns a partir das quais expor sua análise teórica da dependência. De alguma forma, Furtado era um brasileiro singular, que, juntamente com outros, olhava para o Atlântico e o Pacífico, para o Norte e para o Sul, para o interior e o exterior de nossas sociedades, para levantar um projeto continental latino-americano.
Desde a Cepal, com Raúl Prebisch, Aníbal Pinto e um grupo intelectual de primeira, Furtado contribuiu para gestar um projeto de importância maior, um projeto com identidade e com sentido de futuro. Com eles, aprendemos a nos perguntar sobre a interação entre o centro e a periferia, a compreender em profundidade os significados de um conceito de desenvolvimento próprio, de visão estrutural, e também a nos perguntar que variáveis da história, da sociedade e da cultura se instalavam no espaço do ""econômico" para modificá-lo por inteiro. Foram certamente idéias para um debate profundo. Houve detratores, e em boa hora. Mas ninguém pôde descrever Celso Furtado como superficial. No Brasil, no Chile, na França, nos Estados Unidos e em muitos outros lugares do mundo ele foi ouvido com respeito e com admiração.


Furtado contribuiu para gestar um projeto de importância maior, um projeto com identidade e com sentido de futuro
O que me importa resgatar neste momento da partida de Celso Furtado é o sentido maior da tarefa que ele e seus colegas dessa época assumiram: chegar a uma compreensão melhor do continente real a partir da qual dar impulso ao avanço rumo a um continente melhor. E também dizer que existem palavras cuja validade continua a ecoar à nossa volta. Por exemplo, ouvir com ouvidos de hoje uma de suas afirmações fundamentais em ""A Economia Latino-Americana":
""O progresso da análise econômica exige a combinação desse duplo enfoque: por um lado, o estudo dos processos históricos, ou das realidades sociais globais, e a construção de tipologias referentes a eles; por outro, o aprofundamento da compreensão do comportamento dos agentes econômicos a partir de contextos perfeitamente definidos. Ambos se complementam e enriquecem um ao outro. O fato de que seja necessário combiná-los indica a complexidade do trabalho de teorização na ciência econômica".'
Não apenas essa me parece uma afirmação sólida em sua época como também pertinente na realidade de hoje. Sabemos que estamos avançando pela globalização, sabemos que os comportamentos estão acontecendo sem normas nem regras claras, sabemos que essa globalização precisa operar para o ser humano, e não o contrário.
Porque, como também assinalou Furtado e como lembraram seus amigos recentemente, ""o verdadeiro desenvolvimento -não o "crescimento econômico" que surge da mera modernização das elites- só pode existir quando existe um projeto social por trás dele. Apenas se predominam as forças que lutam pela efetiva melhora das condições de vida da população é que o crescimento se transforma em desenvolvimento".
Acho que Celso Furtado gostaria de saber quanta importância procuramos dar hoje à construção de ""políticas públicas" em favor dos mais carentes. Acho que também lhe teria interessado saber que na Cepal, que ele fundou e quis, ocorreu, um mês apenas antes de sua morte, o seminário ""Mudanças nas famílias latino-americanas no contexto das transformações globais: necessidade de políticas públicas eficazes".
O neoliberalismo não é a resposta quando diz que o crescimento econômico, por si só, resolve as questões de longo prazo. É claro que o crescimento econômico é essencial, mas, como disse Celso Furtado, ele apenas nos conduz ao desenvolvimento se existem políticas públicas que levem esse crescimento em benefício daqueles que mais necessitam dele, assim criando uma sociedade com grau maior de coesão social.
Como governante, sei que isso é fácil dizer, mas difícil fazer. Se o conseguirmos, será a melhor homenagem a Celso Furtado, esse grande brasileiro, grande latino-americano e grande pensador do século 20.

Ricardo Lagos, 66, é o presidente do Chile.
Tradução de Clara Allain


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