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TENDÊNCIAS/DEBATES
Celso Furtado e a América Latina
RICARDO LAGOS
A notícia da morte de Celso Furtado nos chegou no meio de um momento especialmente histórico de nossa
política externa: quando acontecia no
Chile a cúpula do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, o Apec.
Ou seja, recebemos a notícia no meio de
uma discussão crucial sobre o desenvolvimento econômico no século 21.
Foi num pequeno apartamento em
Paris, em 1981, quando eu fazia alguns
trabalhos no Centro para o Desenvolvimento da OCDE, que tive o privilégio de
ter algumas conversas com Celso Furtado. Com certeza eu lhe fiz mais perguntas do que dei respostas, e ele mais respondeu do que perguntou.
Suas análises tinham sido profundamente convincentes para aqueles entre
nós que, no início dos anos 60, abriam
caminho para a busca profunda por o
que significávamos como continente e
como latino-americanos. Ele não foi o
único, mas foi essencial para todos nós
conhecer seu pensamento, em artigos,
conferências e análises que culminariam com um de seus livros mais brilhantes: "A Economia Latino-americana". Com a mesma energia que aplicou
para compreender o Brasil do pós-guerra, Celso Furtado trabalhou por uma visão de conjunto para compreender os
aspectos profundos do subdesenvolvimento na América Latina. Nunca hesitou em construir essa visão latino-americana, em abranger a diversidade histórica do continente, para ali encontrar as
tendências comuns a partir das quais
expor sua análise teórica da dependência. De alguma forma, Furtado era um
brasileiro singular, que, juntamente
com outros, olhava para o Atlântico e o
Pacífico, para o Norte e para o Sul, para
o interior e o exterior de nossas sociedades, para levantar um projeto continental latino-americano.
Desde a Cepal, com Raúl Prebisch,
Aníbal Pinto e um grupo intelectual de
primeira, Furtado contribuiu para gestar um projeto de importância maior,
um projeto com identidade e com sentido de futuro. Com eles, aprendemos a
nos perguntar sobre a interação entre o
centro e a periferia, a compreender em
profundidade os significados de um
conceito de desenvolvimento próprio,
de visão estrutural, e também a nos perguntar que variáveis da história, da sociedade e da cultura se instalavam no espaço do ""econômico" para modificá-lo
por inteiro. Foram certamente idéias
para um debate profundo. Houve detratores, e em boa hora. Mas ninguém pôde descrever Celso Furtado como superficial. No Brasil, no Chile, na França,
nos Estados Unidos e em muitos outros
lugares do mundo ele foi ouvido com
respeito e com admiração.
Furtado contribuiu para gestar um projeto de importância maior, um projeto com identidade e com sentido de futuro
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O que me importa resgatar neste momento da partida de Celso Furtado é o
sentido maior da tarefa que ele e seus
colegas dessa época assumiram: chegar
a uma compreensão melhor do continente real a partir da qual dar impulso
ao avanço rumo a um continente melhor. E também dizer que existem palavras cuja validade continua a ecoar à
nossa volta. Por exemplo, ouvir com
ouvidos de hoje uma de suas afirmações
fundamentais em ""A Economia Latino-Americana":
""O progresso da análise econômica
exige a combinação desse duplo enfoque: por um lado, o estudo dos processos históricos, ou das realidades sociais
globais, e a construção de tipologias referentes a eles; por outro, o aprofundamento da compreensão do comportamento dos agentes econômicos a partir
de contextos perfeitamente definidos.
Ambos se complementam e enriquecem um ao outro. O fato de que seja necessário combiná-los indica a complexidade do trabalho de teorização na
ciência econômica".'
Não apenas essa me parece uma afirmação sólida em sua época como também pertinente na realidade de hoje. Sabemos que estamos avançando pela
globalização, sabemos que os comportamentos estão acontecendo sem normas nem regras claras, sabemos que essa globalização precisa operar para o ser
humano, e não o contrário.
Porque, como também assinalou Furtado e como lembraram seus amigos recentemente, ""o verdadeiro desenvolvimento -não o "crescimento econômico" que surge da mera modernização
das elites- só pode existir quando existe um projeto social por trás dele. Apenas se predominam as forças que lutam
pela efetiva melhora das condições de
vida da população é que o crescimento
se transforma em desenvolvimento".
Acho que Celso Furtado gostaria de
saber quanta importância procuramos
dar hoje à construção de ""políticas públicas" em favor dos mais carentes.
Acho que também lhe teria interessado
saber que na Cepal, que ele fundou e
quis, ocorreu, um mês apenas antes de
sua morte, o seminário ""Mudanças nas
famílias latino-americanas no contexto
das transformações globais: necessidade de políticas públicas eficazes".
O neoliberalismo não é a resposta
quando diz que o crescimento econômico, por si só, resolve as questões de
longo prazo. É claro que o crescimento
econômico é essencial, mas, como disse
Celso Furtado, ele apenas nos conduz
ao desenvolvimento se existem políticas
públicas que levem esse crescimento em
benefício daqueles que mais necessitam
dele, assim criando uma sociedade com
grau maior de coesão social.
Como governante, sei que isso é fácil
dizer, mas difícil fazer. Se o conseguirmos, será a melhor homenagem a Celso
Furtado, esse grande brasileiro, grande
latino-americano e grande pensador do
século 20.
Ricardo Lagos, 66, é o presidente do Chile.
Tradução de Clara Allain
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