São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2010

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Anos que não terminam

TONICO FERREIRA


A Justiça saberá dar decisão que mostre a responsabilidade do Estado na morte de jovem que defendia suas ideias sem ter recorrido à luta armada


A falta de um amigo morto é intensa, a de um amigo assassinado covardemente é insuperável.
Luiz Eduardo Merlino tinha 22 anos quando foi preso por agentes de segurança em 1971. A detenção no apartamento de sua mãe em Santos e a morte, quatro dias depois, nas dependências do DOI-Codi em São Paulo estão bem circunstanciadas nos depoimentos de várias testemunhas.
A companheira e a irmã de Luiz Eduardo Merlino acabam de propor ação contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi paulista à época dos atos de tortura que provocaram a morte de meu amigo.
Os fatos são claros, e a Justiça saberá dar uma resposta que satisfaça o mínimo que a companheira e a irmã de Merlino desejam: uma decisão que deixe patente a responsabilidade do Estado na morte de um jovem que defendia suas ideias sem ter recorrido à luta armada, que, à época, era tendência em voga na esquerda universitária.
Vamos voltar a 1966. Aos 18 anos de idade, após um ano vivendo em São Paulo, Merlino e eu rompemos com o nosso passado intelectual de Santos, cidade onde nascemos e fomos amigos fiéis desde o quarto ano primário. No primeiro ano da faculdade de arquitetura da USP, eu havia entrado para um grupo político de esquerda, a DI -Dissidência do Partido Comunista.
Merlino, no curso de história, também da USP, foi para a Polop, a Política Operária. Ambos traímos os cânones que balizavam o nosso grupo de amigos em Santos. Lá, tínhamos a pretensão de ser existencialistas; para nós, a liberdade individual era tudo, e entrar para um partido -o que pressupõe submissão a decisões e pensamentos coletivos- era uma subversão filosófica.
Merlino tinha uma força intelectual que superava a de todos em volta: era quem mais lia Sartre, mais apreciava a música de câmara de Brahms e os arranjos do Modern Jazz Quartet e quem melhor se espelhava em Fernando Pessoa, nossa inspiração de vida.
Leiam estes versos do "Poema em Linha Reta" e entenderão o que se passava naquelas cabeças febris, jovens, niilistas e inconsequentes: "Arre, estou farto de semideuses!/ Onde é que há gente no mundo?".
Na rua Maria Antonia, em São Paulo, trocamos de líderes, substituímos inspirações e viramos jornalistas por força da política (fizemos um jornal estudantil em 67, o "Amanhã", e trabalhamos juntos na "Folha da Tarde", em 68).
Nesse ano, Merlino já havia se filiado a uma dissidência da Polop, o POC (Partido Operário Comunista), que, apesar do "operário" no nome, era formado basicamente por intelectuais e estudantes.
Onde Merlino estaria agora se tivesse sobrevivido ao DOI-Codi? No jornalismo, como eu? No governo federal, como Marco Aurélio Garcia, que foi do POC? Teria feito campanha para Dilma Rousseff, que era da Polop à mesma época?
Não importa muito; queríamos apenas que ele estivesse vivo. Mas imaginar como seria a evolução de uma vida ceifada inútil e precocemente dá a correta dimensão da falta insuperável.


ANTÔNIO CARLOS CARVALHO FERREIRA, o Tonico Ferreira, é jornalista e repórter da TV Globo. Trabalhou, durante a ditadura, nas publicações "Opinião" e "Movimento".

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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