São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Tempus fugit

FINDO ESTE ciclo anual, é oportuno reparar nas figuras do tempo. No alvorecer moderno, a expansão das cidades fabris exigiu medidas precisas do tempo de trabalho. Pautando sua duração, instalaram-se relógios e sinos urbanos, laicos, até que Carlos 5º submeteu a cronologia ao Estado: os sinos de Paris nortearam-se pelo relógio do Palais Royal. O príncipe, leitor de Aristóteles, racionalizou o tempo e sistematizou sua divisão profana. (Le Goff) O conceito aristotélico de tempo ajustou-se ao moderno estilo de vida e trabalho. Na Renascença, Alberti examina suas virtualidades.
Em Della Famiglia, diz o personagem Gianozzo: o sábio é parco, usa o suficiente e deixa o supérfluo, "com a medida em mãos". A parcimônia conserva as propriedades inalienáveis do homem: a alma, o corpo e o tempo, algo precioso, que "de modo algum pode não ser seu". Manter tais bases da liberdade e da propriedade supõe o cultivo de si e a gerência das horas: "fugir ao sono e ao ócio", seriar as tarefas e apropriar-se do tempo que "continuo fugge", ocupando-o sem lapsos, dividindo-o sem interstícios vazios.
O domínio do tempo funda-se em seu princípio, o movimento, traduzido em operosidade regrada: "o homem diligente anda sempre devagar; ao negligente, o tempo foge". Este critério parece submeter a prática humana à duração exterior: para "observar o tempo e segundo ele distribuir as coisas, cuide dos negócios, jamais perca um minuto". Mas a astúcia do plano inverte o curso temporal, dispondo-o conforme os afazeres, e não vice-versa. Pela manhã, idealizam-se os programas e prazos: "de dia faço tudo quanto me é exigido; à noite, reflito no que fiz...". Dia e noite são marcos em cujo intervalo fluem os atos previstos no projeto, escandindo o período intermediário.
Mas o turno dia/noite não impede radicalizar a divisibilidade do tempo, mesmo quebrando outros ritmos vitais: "prefiro perder o sono ao tempo". Dormir ou comer, "posso recuperar amanhã e satisfazer-me, mas não a estação do tempo". Ciclo natural e carências elementares submetem-se à disciplina humana. Subjacente a essas operações está o conceito de tempo como um continuum abstrato, potencialmente divisível ao infinito. A práxis humana nele opera cortes e cálculos segundo seus próprios fins.
Rompem-se os limites do físico e do religioso, emergindo um conceito desnaturado, humano, objeto de propriedade. Tempo, corpo e alma pertencem ao homem, só eles são originária e inteiramente seus: "são mais próprios a mim que toda outra coisa". Surge uma teoria cósmica do tempo e do homem, ambos passíveis de divisões abstratas, que é decisiva na cultura, nas formas de produção e no conceito moderno de trabalho. Dominando-se um, domina-se o outro.
sylvia.franco@uol.com.br


MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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