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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Tempus fugit
FINDO ESTE ciclo anual, é
oportuno reparar nas figuras
do tempo. No alvorecer moderno, a expansão das cidades fabris exigiu medidas precisas do
tempo de trabalho. Pautando sua
duração, instalaram-se relógios e
sinos urbanos, laicos, até que Carlos 5º submeteu a cronologia ao Estado: os sinos de Paris nortearam-se pelo relógio do Palais Royal. O
príncipe, leitor de Aristóteles, racionalizou o tempo e sistematizou
sua divisão profana. (Le Goff)
O conceito aristotélico de tempo
ajustou-se ao moderno estilo de vida e trabalho. Na Renascença, Alberti examina suas virtualidades.
Em Della Famiglia, diz o personagem Gianozzo: o sábio é parco, usa
o suficiente e deixa o supérfluo,
"com a medida em mãos". A parcimônia conserva as propriedades
inalienáveis do homem: a alma, o
corpo e o tempo, algo precioso, que
"de modo algum pode não ser seu".
Manter tais bases da liberdade e da
propriedade supõe o cultivo de si e
a gerência das horas: "fugir ao sono
e ao ócio", seriar as tarefas e apropriar-se do tempo que "continuo
fugge", ocupando-o sem lapsos, dividindo-o sem interstícios vazios.
O domínio do tempo funda-se
em seu princípio, o movimento,
traduzido em operosidade regrada:
"o homem diligente anda sempre
devagar; ao negligente, o tempo foge". Este critério parece submeter
a prática humana à duração exterior: para "observar o tempo e segundo ele distribuir as coisas, cuide
dos negócios, jamais perca um minuto". Mas a astúcia do plano inverte o curso temporal, dispondo-o
conforme os afazeres, e não vice-versa. Pela manhã, idealizam-se os
programas e prazos: "de dia faço
tudo quanto me é exigido; à noite,
reflito no que fiz...". Dia e noite são
marcos em cujo intervalo fluem os
atos previstos no projeto, escandindo o período intermediário.
Mas o turno dia/noite não impede
radicalizar a divisibilidade do tempo, mesmo quebrando outros ritmos vitais: "prefiro perder o sono
ao tempo". Dormir ou comer, "posso recuperar amanhã e satisfazer-me, mas não a estação do tempo".
Ciclo natural e carências elementares submetem-se à disciplina humana.
Subjacente a essas operações está o conceito de tempo como um
continuum abstrato, potencialmente divisível ao infinito. A práxis
humana nele opera cortes e cálculos segundo seus próprios fins.
Rompem-se os limites do físico e
do religioso, emergindo um conceito desnaturado, humano, objeto de
propriedade. Tempo, corpo e alma
pertencem ao homem, só eles são
originária e inteiramente seus:
"são mais próprios a mim que toda
outra coisa". Surge uma teoria cósmica do tempo e do homem, ambos
passíveis de divisões abstratas, que
é decisiva na cultura, nas formas de
produção e no conceito moderno
de trabalho. Dominando-se um,
domina-se o outro.
sylvia.franco@uol.com.br
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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