São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Lobo e cordeiro viverão juntos

ODILO P. SCHERER


É a superação completa dos conflitos e da vontade dominadora sobre os outros. Algo assim será possível entre os seres humanos?

NO NATAL , os cristãos anunciaram mais uma vez ao mundo o seu sonho. As expressões da liturgia natalina trazem as convicções mais belas e profundas dessa festa: "esta noite santa foi iluminada com a claridade da verdadeira luz"; a "palavra eterna de Deus revestiu-se de nossa carne e veio habitar entre nós"; e ainda: "o céu e a terra trocam seus dons": oferecemos a Deus nossa humanidade e ele nos faz participar de sua divindade. Cheios de estupor, então pedimos: "seja-nos concedido em plenitude, no céu, aquilo que já vislumbramos na terra com o olhar da fé". Isso tudo mexe com a utopia boa que, mesmo sem o saber, cada um traz no coração.
A origem do Natal cristão, porém, não vem de uma utopia, mas de um fato real e histórico: o nascimento de Jesus Cristo, fundador do cristianismo. Nele, a fé dos cristãos reconhece o filho de Deus vindo ao mundo para nos dizer que Deus é como um pai, que ama loucamente seus filhos, e convida cada criatura humana a participar de sua felicidade. Jesus nasceu para reunir a comunidade humana numa única grande família de irmãos e irmãs. O Natal é a festa da fraternidade universal entre pessoas e povos.
Um dos textos da Sagrada Escritura lidos no Natal é a profecia de Isaías, anunciando o nascimento do messias, um rei todo animado pelo espírito de Deus e cujo reinado será de justiça e paz perfeitas; inimigos tradicionais deixarão de se odiar e viverão juntos em bucólica harmonia. As imagens dessa profecia são belíssimas: lobo e cordeiro viverão juntos, o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito, bezerro e leão comerão juntos e até uma criança poderá cuidar deles (cf Is 11,1-10). É a superação completa dos conflitos e da vontade dominadora sobre os outros. Algo assim será possível entre os seres humanos?
Na prática, sabemos quanto isso é difícil. Conflitos fazem parte do dia-a-dia e aparecem por toda parte; mesmo assim, e apesar de continuarem os focos de tensão, é preciso tocar a vida.
No fundo do coração, porém, acreditamos que bem melhor seria se todos se entendessem e convivessem em paz; que não houvesse violência, os direitos essenciais de cada ser humano fossem reconhecidos e respeitados e a justiça triunfasse. Também é esse o pressuposto da Carta dos Direitos Humanos, promulgada há 60 anos. Sonho bom da humanidade!
No contexto do Natal, a cada ano o papa envia aos chefes de Estado e a todos os povos uma mensagem para o Dia Mundial da Paz, comemorado pela igreja no dia 1º de janeiro.
Desta vez, o papa trata da superação da pobreza para a construção da paz. A pobreza extrema de amplos setores da população, e mesmo de povos inteiros, é fonte de constantes conflitos e ameaça para a paz. A disparidade gritante entre ricos e pobres está mais evidente que nunca, mesmo em nações economicamente desenvolvidas. "Trata-se de um problema que se impõe à consciência da humanidade", diz o papa: as condições de miséria em que vivem muitas pessoas ofendem a dignidade natural de cada ser humano.
Falamos com freqüência da sustentabilidade da vida em nosso planeta e, com razão, nos preocupamos com isso. Da mesma forma, é preciso pensar na sustentabilidade da paz entre os povos: e isso requer a superação da miséria aviltante do ser humano e a promoção de condições de vida digna para todas as pessoas e povos.
Em tempos de crise econômica e instabilidade no mercado financeiro, corremos o risco de pensar mais em números que em pessoas. Acalmar o nervosismo das Bolsas e retomar a economia, passando pesadas contas a pagar aos pobres do mundo, não seria sustentável para a paz.
Mais do que simplesmente "salvar" a economia, seria necessário rever os pressupostos sobre os quais a ordem econômica e financeira mundial veio sendo edificada e que estão a revelar toda a sua fragilidade e engano.
Talvez também isso seja visto como um sonho impossível, uma utopia fora da realidade... No entanto, não é essa a boa utopia que deveria nortear a busca das soluções para os problemas do mundo? É bem melhor que o lobo não devore o cordeiro e que o leão coma em boa paz palha com o boi, sem ceder ao apetite voraz de devorá-lo...
E retorno ao Natal. O profeta Isaías também anunciava o grande rei-messias, como "príncipe da paz", em cujo reinado haveria grande paz para todos, para sempre! Como os anjos anunciaram na noite de Belém aos pastores: "paz aos homens de boa vontade". Com boa vontade, essa boa utopia pode tornar-se realidade um pouco mais em 2009. Feliz Ano Novo!


CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER , 59, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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