São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

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CPIs para as tragédias anunciadas

FABIO FELDMANN

Não seria o caso de criar nas cidades e nos Estados mais atingidos por esses desastres "naturais" uma CPI para identificar os responsáveis?

TEMOS ASSISTIDO nos noticiários às tragédias usuais do verão, ou seja, deslizamentos de encostas comprometendo bairros instalados em áreas de risco, bem como enchentes que comprometem a vida e o patrimônio de centenas de famílias.
Lembro-me de um artigo por mim redigido em dezembro de 1988 que tratava do mesmo assunto, de modo que é impossível não expressar um sentimento de mal-estar pelo fato de que no Brasil muito pouco tem ocorrido no sentido de evitar a criação de situações de risco, que são toleradas e até certo ponto geradas pelo poder público, na sua omissão no cumprimento de suas tarefas básicas.
Trocando em miúdos, é público e notório que encostas de morro possuem instabilidade geológica e estão sujeitas a deslizamentos. Por essa razão, a legislação florestal brasileira há décadas as considera Áreas de Preservação Permanente (APPs), proibindo a remoção da vegetação exatamente pela função ecológica que ela possui, evitando que o impacto das chuvas acarrete as cenas que ocupam o noticiário desses dias.
Do ponto de vista semântico, passou-se a denominar de serviço ambiental o papel exercido pela vegetação, cujo maior beneficiário nesse contexto é a sociedade de maneira geral, e não a fauna e a flora em si mesmas, como se a defesa das APPs fosse uma questão meramente ecológica de uma minoria de ecologistas radicais.
Aliás, o reconhecimento e a compensação pelos serviços ambientais prestados pela "natureza" é um dos temas mais desafiadores do mundo nesse período de grandes alterações climáticas.
A cada legislatura assistimos a um repetitivo debate em torno dessa questão, na medida em que sempre surgem iniciativas aqui e acolá no sentido de reduzir a abrangência da legislação florestal, muitas vezes utilizando o falso dilema supostamente existente entre meio ambiente e pobreza: o próprio Estatuto da Cidade veio para conferir compatibilidade entre o crescimento urbano (sobretudo diante da má qualidade habitacional e dos péssimos indicativos de saneamento ambiental) e o ambiente, sem que preservação ambiental e expansão urbana sejam consideradas incompatíveis.
A mudança da legislação se deveria fazer para favorecer os pobres cuja necessidade de habitação teria impedimento nas restrições ambientais, segundo muitos argumentam. Mas o que vemos é exatamente o contrário, já que são os mais pobres os grandes prejudicados pelas chuvas de verão...
De fato, o que o Brasil vê nessa estação do ano é a absoluta tolerância da sociedade com o descumprimento da legislação e com as graves conseqüências mencionadas, num jogo de impunidade e corrupção que envolve loteadores clandestinos, autoridades públicas coniventes em todas as esferas e agentes políticos que encaram essa população como mero curral eleitoral, tendo como moeda de troca as sistemáticas regularizações e anistias de tempos em tempos.
Aliás, é preciso enfatizar que essas ocupações mencionadas possuem tal grau de visibilidade na paisagem urbana brasileira que não há como alegar desconhecimento delas.
Entretanto, no país, o mero exercício do poder de polícia foi transformado em discricionariedade pelos nossos administradores públicos, de modo que, diante dessa situação, há que se criar medidas de exemplaridade que possam iniciar um processo novo de cidadania, mediante uma articulação de atores sociais efetivamente comprometidos com o desenvolvimento sustentável.
Não seria o caso de criar em cada uma das cidades e dos Estados mais atingidos por esses desastres "naturais" uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar a responsabilidade dos loteadores, servidores públicos, agentes políticos e demais envolvidos com a geração permanente dessas tragédias anunciadas, com a finalidade de identificar os seus responsáveis?
Iniciativas como essa são importantes porque mobilizam a atenção da opinião pública e são reveladoras do interesse público efetivamente existente nas normas legais, além de sinalizarem aos agentes políticos que o exercício do poder de polícia, com o ônus que ele traz a curto prazo, faz parte do jogo democrático.
Não há como alegar fragilidade dos órgãos de fiscalização governamentais como pretexto para justificar a tolerância com ocupações.
Até porque, com a confirmação do fenômeno do aquecimento global, assistiremos ao agravamento radical dos riscos aos quais todos nós estamos sujeitos, pois incidentes climáticos extremos aumentarão geometricamente. Ou seja, cada vez mais se torna fundamental que os governantes atuem com caráter público e que as instituições públicas tenham capacidade de visão antecipatória e ação efetiva.


FABIO FELDMANN , 51, formado em administração de empresas e direito, é consultor em desenvolvimento sustentável. Foi deputado federal pelo PSDB-SP e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1995-98).


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