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CPIs para as tragédias anunciadas
FABIO FELDMANN
Não seria o caso de criar nas cidades e nos Estados mais atingidos por esses desastres "naturais" uma CPI para identificar os responsáveis?
TEMOS ASSISTIDO nos noticiários às tragédias usuais do verão,
ou seja, deslizamentos de encostas comprometendo bairros instalados em áreas de risco, bem como enchentes que comprometem a vida e o
patrimônio de centenas de famílias.
Lembro-me de um artigo por mim
redigido em dezembro de 1988 que
tratava do mesmo assunto, de modo
que é impossível não expressar um
sentimento de mal-estar pelo fato de
que no Brasil muito pouco tem ocorrido no sentido de evitar a criação de
situações de risco, que são toleradas e
até certo ponto geradas pelo poder
público, na sua omissão no cumprimento de suas tarefas básicas.
Trocando em miúdos, é público e
notório que encostas de morro possuem instabilidade geológica e estão
sujeitas a deslizamentos. Por essa razão, a legislação florestal brasileira há
décadas as considera Áreas de Preservação Permanente (APPs), proibindo
a remoção da vegetação exatamente
pela função ecológica que ela possui,
evitando que o impacto das chuvas
acarrete as cenas que ocupam o noticiário desses dias.
Do ponto de vista semântico, passou-se a denominar de serviço ambiental o papel exercido pela vegetação, cujo maior beneficiário nesse
contexto é a sociedade de maneira geral, e não a fauna e a flora em si mesmas, como se a defesa das APPs fosse
uma questão meramente ecológica de
uma minoria de ecologistas radicais.
Aliás, o reconhecimento e a compensação pelos serviços ambientais
prestados pela "natureza" é um dos
temas mais desafiadores do mundo
nesse período de grandes alterações
climáticas.
A cada legislatura assistimos a um
repetitivo debate em torno dessa
questão, na medida em que sempre
surgem iniciativas aqui e acolá no
sentido de reduzir a abrangência da
legislação florestal, muitas vezes utilizando o falso dilema supostamente
existente entre meio ambiente e pobreza: o próprio Estatuto da Cidade
veio para conferir compatibilidade
entre o crescimento urbano (sobretudo diante da má qualidade habitacional e dos péssimos indicativos de saneamento ambiental) e o ambiente,
sem que preservação ambiental e expansão urbana sejam consideradas
incompatíveis.
A mudança da legislação se deveria
fazer para favorecer os pobres cuja
necessidade de habitação teria impedimento nas restrições ambientais,
segundo muitos argumentam. Mas o
que vemos é exatamente o contrário,
já que são os mais pobres os grandes
prejudicados pelas chuvas de verão...
De fato, o que o Brasil vê nessa estação do ano é a absoluta tolerância da
sociedade com o descumprimento da
legislação e com as graves conseqüências mencionadas, num jogo de impunidade e corrupção que envolve loteadores clandestinos, autoridades públicas coniventes em todas as esferas e agentes políticos que encaram essa
população como mero curral eleitoral, tendo como moeda de troca as sistemáticas regularizações e anistias de
tempos em tempos.
Aliás, é preciso enfatizar que essas
ocupações mencionadas possuem tal
grau de visibilidade na paisagem urbana brasileira que não há como alegar desconhecimento delas.
Entretanto, no país, o mero exercício do poder de polícia foi transformado em discricionariedade pelos nossos administradores públicos, de
modo que, diante dessa situação, há
que se criar medidas de exemplaridade que possam iniciar um processo
novo de cidadania, mediante uma articulação de atores sociais efetivamente comprometidos com o desenvolvimento sustentável.
Não seria o caso de criar em cada
uma das cidades e dos Estados mais
atingidos por esses desastres "naturais" uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar a responsabilidade dos loteadores, servidores públicos, agentes políticos e demais envolvidos com a geração permanente dessas tragédias anunciadas, com a finalidade de identificar os
seus responsáveis?
Iniciativas como essa são importantes porque mobilizam a atenção da
opinião pública e são reveladoras do
interesse público efetivamente existente nas normas legais, além de sinalizarem aos agentes políticos que o
exercício do poder de polícia, com o
ônus que ele traz a curto prazo, faz
parte do jogo democrático.
Não há como alegar fragilidade dos
órgãos de fiscalização governamentais como pretexto para justificar a
tolerância com ocupações.
Até porque, com a confirmação do
fenômeno do aquecimento global, assistiremos ao agravamento radical
dos riscos aos quais todos nós estamos sujeitos, pois incidentes climáticos extremos aumentarão geometricamente. Ou seja, cada vez mais se
torna fundamental que os governantes atuem com caráter público e que
as instituições públicas tenham capacidade de visão antecipatória e ação
efetiva.
FABIO FELDMANN , 51, formado em administração de
empresas e direito, é consultor em desenvolvimento sustentável. Foi deputado federal pelo PSDB-SP e secretário
do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1995-98).
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