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A melhor parte
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Leitor de Eça de
Queiroz, com várias releituras de seus
romances, sempre fiquei agoniado
quando, em ""Os Maias", a mulher que
todos cobiçavam teve um acidente
com o ferro de passar roupa e queimou
uma região do corpo, não identificada
pelo romancista.
Toda Lisboa ficou preocupada. No
círculo mais aristocrático da cidade,
um velho diplomata, vivido e sofrido
no mundo e nas mulheres, veio a saber
que o estrago fora feito na altura dos
quadris. Onde, exatamente, ninguém
sabia.
Penalizado, o velho fauno suspirou:
""Na melhor parte, sei o que estou dizendo, na melhor parte..." (estou citando de memória, as palavras podem
não ser essas).
Minha agonia era dupla: primeiro,
por não saber em que altura dos quadris o ferro em brasa queimara a mulher; segundo, e principalmente, qual
seria essa melhor parte de uma mulher, não da heroína de Eça, mas de
qualquer mulher.
Aliás, não tenho certeza se o Eça
usou a palavra ""parte" ou ""naco".
Acho que naco é mais suculento.
Mas que naco seria esse? Dando de
barato que o velho sátiro fosse um entendido, deve-se supor que ele sabia o
que estava dizendo. Volta e meia, me
surpreendo pensando nesse trecho de
""Os Maias" e descubro que, ao contrário do fauno inventado pelo Eça, eu
vou mudando de opinião de acordo
com o tempo, a oportunidade e a mulher.
Quanto à oportunidade, quando se
tem a mulher inteira, todos os pedaços
parecem bons. Quanto ao tempo,
quando era jovem, o que mais me
atraía eram o rosto, os cabelos, os
olhos, o modo de andar. Com a chegada dos anos, acho que fui ficando parecido com o sátiro do Eça e aos poucos me fixei provavelmente na mesma
região avariada pelo ferro de passar
roupa.
Finalmente, quanto à mulher, ela
nem sempre necessita ter parte alguma, ou melhor, nem é parte. É um todo que constitui o melhor.
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