São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 2000


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A origem de todas as corrupções


Atrás de cada caso de corrupção está o financiamento privado de campanhas


ODED GRAJEW

As revelações de Nicéa Pitta sobre a suposta roubalheira na Prefeitura de São Paulo são mais um episódio de uma longa série, que parece não mais ter fim, a desvendar a extensão do câncer da corrupção que vem deteriorando estruturas sociais, econômicas, culturais e morais da sociedade brasileira.
A cada novo escândalo, assistimos invariavelmente à mesma sequência: revelações, estarrecimento, revolta, tentativa de estabelecimento de uma CPI. Ela às vezes se concretiza, graças, principalmente, à pressão da sociedade, mas termina geralmente em pizza total -ou na melhor das hipóteses na punição de alguns acusados, com a cassação do mandato, mas sem nenhuma punição pela Justiça civil, como prisão ou perda do patrimônio roubado dos cofres públicos.
A cada CPI que termina em algum resultado, renova-se a esperança dos brasileiros de que dessa vez os corruptos serão punidos e que acontecimentos assim não mais se repetirão.
Essa expectativa acaba invariavelmente em frustração com a impunidade dos responsáveis, que ficam soltos, usufruindo do dinheiro desviado dos cofres públicos (quer dizer, do nosso bolso), e com a continuidade de escândalos. O ceticismo e, pior ainda, o cinismo acabam se instaurando na sociedade brasileira. Frases como: "Não tem mais jeito", "Este país não vai dar certo", "São todos corruptos, farinha do mesmo saco", "O negócio é se locupletar" e outras do mesmo teor são cada vez mais ouvidas e assumidas como valores de nossa sociedade.
O combate à corrupção tem tido poucos resultados porque, do meu ponto de vista, o grande esforço tem sido feito no sentido de combater os sintomas, e não as causas dessa terrível doença.
Ainda não houve a percepção por parte da sociedade brasileira de que a grande causa da nossa corrupção chama-se "financiamento privado de campanhas eleitorais".
Um dos grandes pilares da democracia é a possibilidade de o povo se fazer representar votando em candidatos que melhor possam defender o interesse público. O financiamento privado de campanha inviabiliza o sistema democrático porque oferece àquele que tem recursos financeiros condições muito melhores de se eleger, não por suas qualidades, mas por seu dinheiro.
O candidato assim eleito fica amarrado aos interesses dos seus financiadores, procurando atuar de forma a não prejudicar seus interesses, de olho desde o primeiro dia do seu mandato nos recursos da próxima eleição.
Pessoas de bem, honestas e com grande espírito público têm muita dificuldade de se eleger porque não possuem dinheiro para financiar uma campanha eleitoral cada vez mais onerosa pelo peso da propaganda televisiva, escrita e falada e pela estrutura necessária. Muitos candidatos eleitos graças a generosas contribuições ficam inibidos para mudar leis que encarceram o ladrão de galinhas e deixam em liberdade e com o patrimônio intacto os criminosos de colarinho branco.
A maior parte dos recursos das campanhas eleitorais vem das empresas. Elas, em grande parte, salvo honrosas exceções, contribuem para mais de um candidato, porque não querem ficar mal com o possível ganhador. Além disso, não querem ver seu nome aparecer nas listas oficiais, para não ser expostas à opinião pública e para evitar que a sociedade, seus consumidores, seus funcionários e os outros candidatos e partidos saibam de seus apoios.
Esse mecanismo e essa lógica incentivam as empresas a manter o caixa-dois, originado por operações ilegais e danosas aos cofres públicos.
Por outro lado, muitos recursos são doados em troca de compromissos futuros. Esse retorno é obtido por meio de contratos fraudulentos, fornecimentos de mercadorias e serviços superfaturados, concorrências públicas dirigidas, medidas administrativas visando a favorecimentos, fornecimento de informações privilegiadas e outras formas de canalizar recursos públicos de forma ilícita. Boa parte dos recursos é também desviada para formar a "caixinha" das próximas eleições, tanto pelos políticos como pelas empresas, realimentando o ciclo da corrupção.
Atrás de cada caso de corrupção revelado no Brasil está o financiamento privado de campanhas eleitorais. Não é por acaso que quase todos os países europeus e vários Estados norte-americanos instituíram o financiamento público de campanhas. Esse assunto está na agenda dos dois candidatos à Presidência dos EUA e certamente a legislação alemã vai mudar depois dos últimos escândalos originados exatamente por esse tema.
Nenhum câncer será curado com analgésicos, e a corrupção no Brasil poderá ser combatida apenas se agirmos sobre as suas causas. Isso começará a acontecer no dia em que nossa sociedade perceber que a corrupção retira recursos de nossas crianças, da saúde, da educação, da segurança, da geração de empregos e do desenvolvimento. Impacta o cotidiano e o futuro de cada brasileiro. Será o tempo de colocar o tema na agenda da sociedade, inclusive da mídia, e de encarar esse ovo da serpente que é o financiamento privado de campanhas eleitorais.


Oded Grajew, 55, é diretor-presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, presidente do Conselho de Administração da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e conselheiro da Transparência Brasil.



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