São Paulo, sábado, 29 de abril de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Estatuto da Igualdade Racial poderia trazer avanços para as relações sociais no Brasil?

SIM

Modelos de sociedade e projetos de cidadania

FLÁVIO GOMES E MARCELO PAIXÃO

No Brasil se forjou a idéia de que as formas assumidas pelos contatos inter-raciais são fundamentalmente pacíficas. Os historiadores conhecem bem a montagem de uma ideologia da desracialização no século 19, que silenciava sobre a raça, mas que, na prática, escravizava as pessoas (com legislação e políticas públicas), fundada em estrita fundamentação racial. Tal prática não se tornou incompatível com as narrativas da miscigenação. Mistura e exclusão -em termos raciais- sempre andaram juntas no caso brasileiro. A raça não era evocada -já exaltavam Nabuco e outros abolicionistas-, mas as tensões que poderiam sugeri-la preocupavam de sobremaneira.
Mesmo na montagem do moderno Estado nacional brasileiro, a questão aparecia ausente dos debates, mas não das tensões -em termos raciais no sentido das expectativas de cidadania- que reverberavam nas ruas, parlamentos, palácios e pasquins. Desde a celeuma sobre o fim do tráfico atlântico, passando pelas propostas imigrantistas, a questão ressurgia em termos dialógicos com os projetos de nação. Quem eram os cidadãos, suas origens sociais e étnicas? Quais os limites dessa cidadania em termos de imagens de raça e nacionalidade? O debate sobre participação política no período de pós-independência igualmente foi profundamente marcado por tensões, com expectativas de libertos e "homens de cor" livres.
Em outras sociedades pós-coloniais, como Cuba e Venezuela, não foi diferente. A idéia de uma positiva excepcionalidade da escravidão, abolição e relações raciais no Brasil é mais um discurso da ideologia racial. Sob silêncios estrondosos, os projetos de nação eram apresentados, escolhas feitas e políticas governamentais desenhadas: sempre preservando e ampliando as disparidades raciais existentes.
Ao longo de todo o século 20 tal padrão cultural, em meio ao contexto de modernização do país, se prorrogou mediante a naturalização dos papéis sociais ocupados por brancos e negros (e os mestiços portadores das distintas marcas raciais). Assim, a harmonia racial à brasileira, suposto patrimônio nacional imaterial, somente pode ser entendida desde esse parâmetro. Qual? Excluir em termos raciais sem jamais falar em público sobre raça. Destarte, tudo fica na mais perfeita ordem, desde que, é óbvio, os negros saibam qual é o seu lugar.
A sociedade em que vivemos pode não ser racializada, mas a desigualdade sim. Tais práticas sociais são irredutíveis a outros contextos, tendo em vista ser uma genuína criação nacional. Mas para um país que, além do seu talento no samba e no futebol, se notabilizou pelas suas extremadas assimetrias sociais é fundamental reconhecer tal dimensão. A cor da pobreza do Brasil é negra. Esse perfil não se associa apenas ao distante passado escravista, mas está correlacionada com a perpetuação de um modelo de relações raciais que tendeu a, denodadamente, preservar tal realidade.
Portanto a pertinência da aprovação do estatuto é uma questão política e moral. Esse processo não pode ser visto de forma dissociada do projeto do Brasil enquanto nação, e dos correspondentes modelos desejáveis de sociedade. De fato, muitos vociferam que tal modelo deveria banir a raça do horizonte. Porém seria silenciando sobre as evidentes assimetrias raciais causadas pelo racismo à brasileira que tal desiderato seria alcançado? Tornando naturais tais disparidades, violências e injustiças -resultado prático do modelo brasileiro de relações raciais- é que chegaremos a viver em um país melhor?
O Estatuto da Igualdade Racial, por si só, dificilmente conseguirá eliminar as crescentes cotas de racismo ou inverterá os pesos de nossa balança social, secularmente viciada em termos de injustiça, privações e violências. Tampouco nos parece razoável supor que tal projeto venha a se conformar enquanto um monstro jurídico que, guloso, irá devorar a sobremesa da nossa paz social. Isso porque as dinâmicas assumidas pelas relações sociais, e raciais, não são geradas por leis e estatutos.
Antes esse mesmo corpo legal é que deve expressar os avanços conceituais, axiológicos e políticos presentes no interior de uma determinada sociedade. Nesse sentido, a preservação das tradicionais hierarquias raciais presentes na sociedade brasileira soa imoral por ela mesma. A imperiosa necessidade de sua superação é que exige a imediata criação de mecanismos legais que caminhem nesse rumo.


Flávio Gomes é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Marcelo Paixão é professor do Instituto de Economia da UFRJ.

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