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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Estatuto da Igualdade Racial poderia trazer avanços para as relações sociais no Brasil?
SIM
Modelos de sociedade e projetos de cidadania
FLÁVIO GOMES E MARCELO PAIXÃO
No Brasil se forjou a idéia de que
as formas assumidas pelos contatos inter-raciais são fundamentalmente
pacíficas. Os historiadores conhecem
bem a montagem de uma ideologia da
desracialização no século 19, que silenciava sobre a raça, mas que, na prática,
escravizava as pessoas (com legislação e
políticas públicas), fundada em estrita
fundamentação racial. Tal prática não
se tornou incompatível com as narrativas da miscigenação. Mistura e exclusão
-em termos raciais- sempre andaram juntas no caso brasileiro. A raça
não era evocada -já exaltavam Nabuco e outros abolicionistas-, mas as tensões que poderiam sugeri-la preocupavam de sobremaneira.
Mesmo na montagem do moderno
Estado nacional brasileiro, a questão
aparecia ausente dos debates, mas não
das tensões -em termos raciais no sentido das expectativas de cidadania-
que reverberavam nas ruas, parlamentos, palácios e pasquins. Desde a celeuma sobre o fim do tráfico atlântico, passando pelas propostas imigrantistas, a
questão ressurgia em termos dialógicos
com os projetos de nação. Quem eram
os cidadãos, suas origens sociais e étnicas? Quais os limites dessa cidadania em
termos de imagens de raça e nacionalidade? O debate sobre participação política no período de pós-independência
igualmente foi profundamente marcado por tensões, com expectativas de libertos e "homens de cor" livres.
Em outras sociedades pós-coloniais,
como Cuba e Venezuela, não foi diferente. A idéia de uma positiva excepcionalidade da escravidão, abolição e relações raciais no Brasil é mais um discurso da ideologia racial. Sob silêncios estrondosos, os projetos de nação eram
apresentados, escolhas feitas e políticas
governamentais desenhadas: sempre
preservando e ampliando as disparidades raciais existentes.
Ao longo de todo o século 20 tal padrão cultural, em meio ao contexto de
modernização do país, se prorrogou
mediante a naturalização dos papéis sociais ocupados por brancos e negros (e
os mestiços portadores das distintas
marcas raciais). Assim, a harmonia racial à brasileira, suposto patrimônio nacional imaterial, somente pode ser entendida desde esse parâmetro. Qual?
Excluir em termos raciais sem jamais falar em público sobre raça. Destarte, tudo fica na mais perfeita ordem, desde
que, é óbvio, os negros saibam qual é o
seu lugar.
A sociedade em que vivemos pode
não ser racializada, mas a desigualdade
sim. Tais práticas sociais são irredutíveis a outros contextos, tendo em vista
ser uma genuína criação nacional. Mas
para um país que, além do seu talento
no samba e no futebol, se notabilizou
pelas suas extremadas assimetrias sociais é fundamental reconhecer tal dimensão. A cor da pobreza do Brasil é
negra. Esse perfil não se associa apenas
ao distante passado escravista, mas está
correlacionada com a perpetuação de
um modelo de relações raciais que tendeu a, denodadamente, preservar tal
realidade.
Portanto a pertinência da aprovação
do estatuto é uma questão política e
moral. Esse processo não pode ser visto
de forma dissociada do projeto do Brasil enquanto nação, e dos correspondentes modelos desejáveis de sociedade. De fato, muitos vociferam que tal
modelo deveria banir a raça do horizonte. Porém seria silenciando sobre as evidentes assimetrias raciais causadas pelo
racismo à brasileira que tal desiderato
seria alcançado? Tornando naturais tais
disparidades, violências e injustiças
-resultado prático do modelo brasileiro de relações raciais- é que chegaremos a viver em um país melhor?
O Estatuto da Igualdade Racial, por si
só, dificilmente conseguirá eliminar as
crescentes cotas de racismo ou inverterá
os pesos de nossa balança social, secularmente viciada em termos de injustiça, privações e violências. Tampouco
nos parece razoável supor que tal projeto venha a se conformar enquanto um
monstro jurídico que, guloso, irá devorar a sobremesa da nossa paz social. Isso
porque as dinâmicas assumidas pelas
relações sociais, e raciais, não são geradas por leis e estatutos.
Antes esse mesmo corpo legal é que
deve expressar os avanços conceituais,
axiológicos e políticos presentes no interior de uma determinada sociedade.
Nesse sentido, a preservação das tradicionais hierarquias raciais presentes na
sociedade brasileira soa imoral por ela
mesma. A imperiosa necessidade de sua
superação é que exige a imediata criação de mecanismos legais que caminhem nesse rumo.
Flávio Gomes é professor do Departamento de
História da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Marcelo Paixão é professor do Instituto
de Economia da UFRJ.
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