São Paulo, sábado, 29 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A numeração de obras autorais deve ser implementada?

NÃO

De boas intenções o Brasil está cheio

EDUARDO MUSZKAT

Está claro o nobre objetivo dessa nova lei, aprovada há poucos dias pelo Congresso e que aguarda a sanção presidencial: defender o artista brasileiro de possíveis atos lesivos por parte de suas gravadoras ou editoras, que, por falta de idoneidade, venderiam muito mais cópias dos produtos contendo sua obra do que declaram aos mesmos, pirateando a obra de seus artistas.
Segundo a justificativa da deputada Tânia Soares, autora do projeto, essa prática lesiva é a regra no mercado brasileiro, o que justificaria plenamente a adoção da nova lei.
Surge logo a primeira dúvida: Será que a maioria das gravadoras no Brasil tem mesmo como regra lesar seus artistas com essa prática deplorável, de tal maneira que se justifique criar uma lei para o tema? Estou certo de que não. Em minha empresa, um artista pode verificar a qualquer momento, diretamente no sistema, o volume de vendas de seus produtos. Se houver dúvida, as próprias notas fiscais de fabricação são disponibilizadas para análise.
Sei também que, na ABMI (Associação Brasileira da Música Independente), o sócio que não pagar corretamente seus artistas ou parceiros é imediatamente cortado do quadro associativo, perdendo credibilidade perante o mercado e seus pares.
É importante observar que a relação entre artista e gravadora é baseada na confiança e o artista tem sempre a liberdade de sair de uma gravadora, especialmente se esta não prestar contas corretamente. Por outro lado, é só com um trabalho coordenado e construtivo que artista e gravadora conseguem o melhor resultado para seus produtos.
Na verdade, essa lei parece dirigida a preservar os artistas que têm seu trabalho distribuído por algumas gravadoras desonestas, em que os mesmos não confiam, mas das quais não querem se desligar. Se assim é, não seria mais simples que se comprovasse a fraude por meio do trabalho de advogados e contadores? Todo contrato que eu conheço permite essa verificação, a qualquer momento, por parte do artista.
Assim, o que pode parecer, à primeira vista, uma solução na verdade acaba prejudicando ainda mais a situação. Não há dúvida de que as empresas desonestas encontrarão formas de burlar a lei, mesmo porque é impossível para o artista controlar a numeração ou assinar todas as cópias de um produto.
Dá para imaginar um único CD com até 20 assinaturas de todos os compositores cujas músicas estão naquele produto? Mais importante: se a lei for implementada, como sancionada, podemos estar certos de que haverá aumentos de custos significativos, especialmente para as editoras e gravadoras independentes, que trabalham com pequenas tiragens, o que resultará na queda das vendas oficiais e no aumento da pirataria, entre outras coisas.
Num mercado em que é urgente baixar o preço dos CDs, para coibir a pirataria, como justificar o aumento de custos decorrente desse pretenso controle?
O Brasil é um país de muitas leis. Nossos legisladores gastam muito tempo e dinheiro criando e alterando leis a cada semana. No entanto é difícil encontrar um país onde o desrespeito às mesmas leis seja tão gritante e impune.
Por que as milhares de bancas de camelôs continuam vendendo CDs piratas em cada esquina? Será que não há leis suficientes para acabar com isso?
É certo que seria mais eficaz aumentar exponencialmente a punição para casos comprovados de fraude contra a propriedade intelectual e aplicar a esses crimes as leis já existentes, com algumas punições exemplares. Ninguém mais correria o risco de se envolver nesse tipo de contravenção.
Sugiro que políticos, artistas, gravadoras, lojas etc. mobilizem-se para discutir a fundo problemas como a pirataria, o download ilegal, a tributação excessiva, a fiscalização corrupta, o estreitamento dos canais de divulgação e venda, o "jabá" nos meios de comunicação e, principalmente, a inexistência de políticas industrial e cultural que permitam à música e à cultura brasileiras alcançar o seu lugar merecido no panorama mundial. Já não há mais espaço para pirotecnia populista.
A deputada Tânia Soares finaliza as justificativas para a lei afirmando que "nos Estados Unidos da América, a numeração de CDs é aplicada e lá os autores recebem os seus direitos de forma lídima". Sugiro que alguém tente encontrar esse número em qualquer CD importado dos EUA.
Naquele país, a Constituição, escrita em 1787, tem apenas quatro páginas. Lá tempo é dinheiro e contravenção dá cadeia.


Eduardo Muszkat, 41, mestre em administração de empresas, é presidente da gravadora MCD World Music e membro do Conselho Diretor da ABMI.



Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
A numeração de obras autorais deve ser implementada? - Sim - José Cralos Costa Netto: Que venha a numeração

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.