São Paulo, terça-feira, 29 de junho de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Pequeno e grande

O indivíduo, capaz de resistir, de imaginar e de surpreender, faz a diferença entre o aproveitamento e o desperdício de oportunidades históricas.
Três fatores na consciência das minorias politizadas e informadas que manobram a vida pública brasileira explicam por que elas menosprezam o papel da grandeza individual nas transformações que a nação procura. O primeiro fator é o predomínio, sobretudo no pensamento de esquerda, de conceitos que tratam o indivíduo como joguete de forças coletivas. O segundo fator é a cultura do desencanto político, que nossa classe média importou, tão fora de hora, das democracias fartas do Atlântico norte. O terceiro fator é a fraqueza entre nós de tudo o que não renda benefícios palpáveis porque não se assente nas realidades tangíveis da família, da propriedade e do poder. Orientar-se a ideais distantes e a idéias abstratas costuma ser visto no Brasil como evasão romântica; render-se a influências imediatas, como realismo. Nenhum país se engrandeceu sob a direção de tais concepções amesquinhadoras. Nada que preste se faz com esse rebaixamento de espírito.
Nunca o país precisou tanto da afirmação intransigente de nossas possibilidades coletivas. E nunca essa afirmação dependeu tanto também de altivez, magnanimidade, audácia e imaginação em nossos líderes.
O tom dominante no Brasil de hoje é dado pela semelhança psicológica entre o presidente atual e o seu predecessor, por si só uma demonstração da insuficiência de categorias sociais para explicar a conduta individual. Insinuantes, charmosos, palavrosos, espertos, flexíveis, descrentes, mundanos, hedonistas, vidrados na correlação de forças dentro e fora do país e cegos para qualquer outra possibilidade -os dois são tudo o de que não precisamos agora.
Em 2002, as sondagens eleitorais qualitativas demonstravam que boa parte do eleitorado, determinada a ver o país mudar de rumo, chegou a contragosto ao voto em Lula. Funcionava o preconceito dos trabalhadores contra o ex-trabalhador: temia-se que seria facilmente envolvido e manipulado pelos doutores. Só depois de destruídos ou autodestruídos os outros candidatos de oposição é que a maioria se resignou a votar no ex-metalúrgico. À luz do que aconteceu nesses dois anos de governo submisso a uma cartilha importada e ruinosa, há o perigo de que ressurja o preconceito superado; muito tempo passará antes que o povo brasileiro eleja outro operário presidente.
Lula, porém, não se entregou porque nasceu pobre. Entregou-se por ser pequeno demais para o desempenho da tarefa a que os acidentes da vida e da história o alçaram. Não é selecionando líderes por classificações sociológicas que mudaremos esse quadro. É vendo cada um pelo que é, independentemente de origens, estilos e maneiras. É procurando grandeza a serviço de alternativa clara: força que venha de dentro, não extroversão sedutora. Força que inspire, ilumine e energize.
Os brasileiros estamos cansados de tanta infidelidade conformista e covarde, travestida de realismo. A esse meu país exausto e enojado, proponho iniciativa e luta. Na sucessão presidencial de 2006, teremos de fazer o necessário por meio do improvável, construindo alternativa, de projeto, de poder e de pessoa, onde há hoje apenas esperteza sem limite e tristeza sem fim.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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