São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Como depurar o Legislativo

ALDO PEREIRA


Melhor que branco ou nulo seria o voto negativo, pelo qual o eleitor poderia dizer "Não" a um nome execrado
Parece inevitável que a confusão de perigos e oportunidades desta crise vá desaguar em algum tipo de reforma política. O perigo é que autores dos "erros" (leia "delitos") venham pescar nessas águas turvas justamente para mais bem se haverem com a indignada condenação popular que provocaram.
De qualquer modo, a futilidade dessa condenação decerto já conforta muitos mandatários. Voto em branco? Nulo? Esses esperneios inócuos não prevenirão o retorno ao Congresso Nacional, por exemplo, daqueles que tiverem renunciado para escapar à cassação e voltar pronto para outra.
Melhor que branco ou nulo seria o voto negativo, aquele pelo qual o eleitor pudesse dizer "Não!" a um nome execrado. Seu voto negativo anularia o que algum outro eleitor tivesse dado, talvez vendido, a candidatos desqualificados para o mandato. Em concomitância, tal voto diminuiria o dividendo eleitoral alocado à respectiva legenda.
Aliás, se instituído, o direito a voto negativo talvez nem precisasse ser exercido. Nenhum parasita da política arriscaria dinheiro, mesmo "não contabilizado", se previsse que seu curral eleitoral seria superado, em número, pelos eleitores que o rejeitariam. Partidos de aluguel não achariam locatários para suas legendas postiças. E os partidos efetivamente representativos seriam mais prudentes na composição de suas chapas.
Imagino quanta gente irá ponderar que, se a idéia fosse plausível, outro país já a teria implementado. A objeção remete a um precedente histórico, do qual se ocupou Aristóteles na "Constituição de Atenas": o ostracismo. O significado do termo encarquilhou com o passar dos séculos, é verdade (hoje, por exemplo, "cair no ostracismo" é ser vítima de discriminação ou segregação). Mas, na acepção original e histórica, ostracismo era forma constitucional de exclusão praticada em certas cidades-Estados da Grécia pré-cristã, inclusive Atenas.
Antes de instituído o ostracismo, a sucessão ateniense se fazia pela expulsão violenta da elite dominante por outra facção da mesma classe. Para prevenir esses traumas sucessórios, instituiu-se uma forma de desterro legal do líder da oposição. Ele, e apenas ele, poderia ser banido por dez anos, se pelo menos 6.000 eleitores assim decidissem. (Estima-se que 40 mil homens, dos 300 mil habitantes da cidade, tinham direito a voto). Para expressar seu veredicto, o votante inscrevia o nome do indiciado na concavidade de um caco (óstracon) de vasilha de cerâmica e o entregava a um magistrado para tabulação. (Erroneamente, o "Houaiss" diz que o voto era inscrito numa concha de ostra revestida de cera; a confusão provavelmente advém de óstracon ser uma derivação figurativa de óstreion, "ostra", "concha").
O ostracismo não era infamante nem implicava confisco de bens. O caso mais célebre e ilustrativo decorreu da divergência que, em 482 a.C., opôs dois reputados generais e estadistas: Temístocles, de origem bastarda, e o aristocrático Aristides. Atenas vivia então perigo mortal. Xerxes 1º não desistira do projeto herdado do pai, Dario 1º, de estender o império persa à Europa e dominar o Mediterrâneo.
Aristides optava por reforçar a infantaria que havia contido em Maratona a primeira invasão persa. Temístocles achava que o único modo de compensar a inferioridade numérica dos gregos seria triplicar a esquadra ateniense e destruir aquela de que os persas precisariam para abastecer seu formidável exército. Tal projeto, bem mais caro que a estratégia terrestre, desagradava a nobreza abastada: guerreiros nobres preferiam comprar armas para seu uso pessoal em vez de contribuir para o patrimônio coletivo.
Mas a maioria não era nobre. Apesar do honroso currículo militar e da reconhecida honestidade administrativa que lhe valera cognome de "O Justo", Aristides perdeu. Com o rival banido, Temístocles negociou aliança com cidades rivais, logrou construir metade do número de navios pretendido e salvou Atenas com a vitória naval dos gregos em Salamis (480 a.C.).
Embora distintas do ostracismo em atributos particulares, certas formas análogas de exclusão continuam sendo praticadas nas mais democráticas sociedades. Por exemplo, quando a OAB interdita a profissão aos despreparados. Ou quando a comunidade empresarial "ostraciza" caloteiros e falidos. Lato sensu, cassação de mandato é ostracismo. Mas o precedente grego é o mais inspirador dos exemplos. Se representantes do povo podem cassar direitos políticos de seus pares, como negar a expressão direta e explícita de igual julgamento a quem lhes delega esse poder?
O estamento patrimonialista em que se converteu a classe política brasileira não aparenta interesse em restituir ao povo a soberania que tem usurpado para benefício pessoal próprio. Mas, pela humilde aceitação do veredicto do voto negativo, poderia remir, em parte, pecados cívicos, como o dessas transfusões financeiras, dos que têm estômagos vazios para aqueles que recorrem à cirurgia quando precisam conter a expansão dos seus.
Aldo Pereira, 72, jornalista, foi editorialista da Folha e atualmente é colaborador do jornal.

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