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TENDÊNCIAS/DEBATES
A autorregulamentação é medida eficiente para restringir a publicidade direcionada às crianças?
NÃO
Insuficiente para proteger a infância
DANIELA BATALHA TRETTEL e MÁRCIO SCHUSTERSCHITZ DA SILVA ARAÚJO
O MODELO da sociedade de consumo não se esgota na produção e distribuição massificada
de bens e serviços. Também faz parte
da essência desse modelo o processo
de comercialização, que inclui a publicidade e o marketing, cujos objetivos são incrementar vendas, induzir
comportamentos e criar demandas.
Como parte, e não o todo da vida
em sociedade, o modelo de produção,
comercialização e consumo deve ser
avaliado e valorado em seus conflitos
com outros valores e consequências.
O consumo não é mais simples operação econômica, mas positiva preocupação jurídica.
É possível induzir o consumo infantil de produtos associados a doenças crônicas, notadamente à obesidade? Juridicamente, não.
O pressuposto de qualquer consumo é a segurança do consumo. O
pressuposto de qualquer ação econômica sobre a criança é o respeito por
sua condição prioritária, sua liberdade e seu desenvolvimento.
Contrário a isso, a indução ao consumo de alimento ou bebida gordurosos, com altos teores de sais e açúcares, é a formação de hábitos, de dieta e
de padrão de relacionamento da
criança com o alimento em desrespeito a essa proteção legal e vinculante.
A criança não sabe se proteger da
publicidade. Na verdade, por sua condição cognitiva, não sabe sequer reconhecê-la, quanto mais perceber sua
natureza parcial e indutora. Ao fornecedor não deve ser permitido direcionar sua estrutura para atingir esse público hipossuficiente, influenciável,
exposto e encantado por personagens, figuras e personalidades que
formam o imaginário infantil.
A obesidade é uma epidemia criada
pelo homem. Atinge mais de 13% das
crianças. Decorre de hábitos e padrões de conduta.
Não pode a publicidade, pois, funcionar para dar à industria a potencialidade de formar os hábitos alimentares do público infantil, o padrão de relacionamento, valoração e
atração entre criança e alimento.
A questão das doenças crônicas e a
indústria no Brasil deve ser assim vista no contexto constitucional e legal
brasileiro. Aqui, a criança, a saúde, a
vigilância sanitária, a função social da
iniciativa privada e a proteção do consumidor são constitucionais.
A publicidade não é liberdade de
expressão, mas liberdade de iniciativa, vinculada aos valores da ordem
econômica (vale o exemplo da Lei Cidade Limpa, que não foi impedida por
eventual liberdade de expressão).
Considerados esses pressupostos, é
possível afirmar que a autorregulamentação da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis para
crianças abaixo de 12 anos recém-anunciada é insuficiente para garantir a proteção da saúde e da infância.
O documento, assinado por 24
grandes empresas, tem uma série de
lacunas que permitem, na prática,
que a publicidade continue a atingir a
criança.
Segundo o compromisso empresarial anunciado, quem dirá se o produto é saudável ou não é a própria empresa fabricante, e a limitação da publicidade se restringirá a inserções
publicitárias em televisão, rádio, mídia impressa ou internet que tenham
50% ou mais de audiência constituída
por crianças menores de 12 anos.
No documento, não há previsão da
interrupção de outras condutas lesivas, como distribuição de brindes associados a produtos não saudáveis e
uso de personagens, desenhos e outras imagens com forte apelo infantil.
Falta a definição de um padrão único do que se considera saudável, impedindo que cada empresa utilize critérios que atendam a seus interesses.
Por fim, o critério para restrição
vinculado a percentual de audiência
não é eficiente. O mais adequado é a
adoção de horários em que a publicidade pode ou não ser veiculada. Como medir a audiência, por exemplo,
na internet?
Embora assumir esse compromisso seja um movimento positivo das
indústrias de alimentos e bebidas,
não está excluída a necessidade de
edição de uma norma governamental
que contemple os pontos que ficaram
de fora da autorregulamentação.
Cumpre esse papel a resolução que
a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está finalizando e
que deve entrar em vigor neste ano.
DANIELA BATALHA TRETTEL , mestre em direito pela
USP, é advogada do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor).
MÁRCIO SCHUSTERSCHITZ DA SILVA ARAÚJO é procurador da República.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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