São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Presidenciáveis, soros e vacinas

ISAIAS RAW, PAULO BUSS, ERNEY CAMARGO e AKIRA HOMMA

Vacinas são usadas para prevenir doenças infecciosas. Soros são usados, junto de outras medidas, para controlar as doenças que não puderam ser prevenidas. A introdução de antibióticos, soros e vacinas na medicina certamente contribuiu para que a expectativa de vida do homem passasse de 40 para 75 anos ao longo do século 20.
Por não serem comercialmente interessantes, soros são em geral produzidos por instituições estatais. Raramente são comercializados. Vacinas são produzidas por empresas multinacionais e, em alguns países, por instituições públicas. Vacinas não são o segmento mais lucrativo da indústria farmacêutica.
Vacinas destinam-se a evitar a recorrência e a propagação de moléstias que podem periodicamente eclodir em surtos -que, por sua vez, podem evoluir para epidemias e pandemias. As tragédias causadas pela peste e pela varíola no passado não se repetem hoje em dia exatamente por causa dos soros e vacinas. Mas, em 1918, tivemos uma terrível pandemia de gripe e, nos anos 70, uma gravíssima epidemia de meningite no Brasil. Se faltarem vacinas, tragédias desse tipo podem acontecer.
Mas será mesmo possível que vacinas possam faltar no pujante mundo moderno? Infelizmente a resposta é sim. No primeiro semestre deste ano, uma empresa global desativou a produção das vacinas contra a difteria e o tétano (vacinas triviais e baratas). Por essa razão, em todos os Estados Unidos, faltaram vacinas para as crianças no retorno ao ano escolar de 2002. A escassez foi obviamente maior nos Estados mais distantes do centro político do país. Ainda não temos dados sobre os danos que a falta de vacinas causou ao resto do mundo, mas não estamos otimistas.
A situação gerou sucessivas audiências no Congresso dos EUA. Um comitê assessor para assuntos de saúde militar, considerando a gravidade da situação, entendeu que "as Forças Armadas deveriam investir mais no desenvolvimento de vacinas e na sua produção e, quem sabe, até produzi-las por conta própria", por razões de segurança, uma vez que o mercado seria muito pequeno (desinteressante) para a indústria farmacêutica.
Em escala global, vacinas são produzidas por apenas quatro ou cinco empresas multinacionais. Alguns países produzem suas próprias vacinas, mas são poucos. Entre eles está o Brasil.


Será mesmo possível que vacinas possam faltar no pujante mundo moderno? Infelizmente a resposta é sim


Na década de 80, quando o mundo passou por profunda modificação econômica e social, alguns países decidiram delegar suas necessidades em vacinas às leis do mercado, optando por comprá-las em vez de as produzir. O Brasil, entre outros países, decidiu produzi-las. Só as gerações futuras poderão dizer quem estava certo. No melhor de nosso entendimento, nós, hoje responsáveis pelas instituições produtoras de vacinas do país, achamos que a decisão foi totalmente correta.
A partir da década de 80, o país optou pela auto-suficiência na produção de soros e vacinas, criando o Pasni (Programa de Auto-Suficiência Nacional de Imunobiológicos). Desde então, todos os governos têm honrado e patrocinado essa política. Nestes 20 anos, o Pasni investiu aproximadamente US$ 150 milhões na modernização e construção de novos laboratórios de produção segundo as normas das Boas Práticas de Fabricação. Hoje o parque estatal de imunobiológicos atende 80% da demanda por vacinas do país. Isso implica a produção anual de 200 milhões de doses de diversas vacinas.
Informamos, com justo orgulho profissional, que a produção brasileira está atingindo ou já atingiu, para alguns produtos, certificação de qualidade internacional. Não obstante, para a conquista plena da auto-suficiência, ainda há muito o que fazer. Isso inclui a produção de vacinas de tecnologia já disponível, mas ainda não fabricadas no país (poliomielite inativada, meningite C conjugada, rotavirus) e o desenvolvimento de novas vacinas (cólera, tularemia, Aids, dengue, malária etc.).
Inclui também o domínio tecnológico da nova geração de vacinas (DNA recombinante e vacinas de DNA), em substituição às atualmente utilizadas.
Embora o objetivo da produção de soros e vacinas não seja gerar lucros, mas benefícios, os laboratórios produtores brasileiros já vêm proporcionando uma economia anual de cerca de US$ 100 milhões em divisas. Além disso, empregam 2.500 profissionais especializados, geram 30 mil empregos indiretos e movimentam aproximadamente US$ 100 milhões por ano.
Para que a política nacional de auto-suficiência em soros e vacinas se consolide e aperfeiçoe, consideramos indispensável que o governo continue a privilegiar a aquisição dos produtos nacionais, sempre que estes apresentem qualidade igual ou superior à dos estrangeiros. Entendemos também que o governo deve manter atualizado o fluxo dos recursos financeiros devidos aos fornecedores de soros e vacinas e facilitar a importação de insumos e equipamentos essenciais para a modernização do parque produtivo nacional.
Finalmente, consideramos essencial a continuidade de um programa plurianual de investimentos que permita a permanente atualização tecnológica e industrial do setor de imunobiológicos.
A proximidade das eleições e o desejo de podermos compartilhar com os candidatos as responsabilidades pela saúde de nosso povo nos levam a pedir uma definição programática e clara dos senhores presidenciáveis sobre a produção nacional de soros e vacinas.


Isaias Raw, 75, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Fundação Instituto Butantan. Paulo Buss, 53, é presidente da Fundação Instituto Oswaldo Cruz. Erney Plessman de Camargo, 67, é diretor da Fundação Instituto Butantan. Akira Homma, 63, é diretor do Laboratório de Biomanguinhos/Fiocruz.



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