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DEMÉTRIO MAGNOLI
Miséria da filosofia
O filósofo Renato Janine Ribeiro, que ocupa cargo de nomeação
federal, afirmou que a mídia "não admite a diferença" e declarou-se "pasmo" com a publicação, pela Folha, da
carta de Marilena Chaui aos seus alunos, um texto "privado, ainda que circule". A declaração opera no mesmo
registro da carta, que não é o que parece ser.
Chaui atribuiu ao seu texto um estatuto privado, de reflexão pessoal no
ambiente acadêmico, que é reforçado
por menções à doença de sua mãe.
Mas a carta tem como destinatário o
público genérico dos alunos da filósofa, é postada na internet e aborda a
crise política atual. Num lance de
prestidigitação, a autora produz uma
narrativa que deve ser pública o suficiente para cumprir uma função política, mas suficientemente privada para protegê-la da crítica pública. Ao
deslocar o texto para a esfera pública,
à qual de fato pertence, a Folha o submete ao escrutínio geral, o que provoca a ira de Janine Ribeiro.
O estatuto atribuído por Chaui a seu
texto deve ser entendido como elemento auxiliar de produção de sentido. A carta acusa a mídia de fabricar o
silêncio da filósofa, como parte de
uma campanha deliberada de desinformação dirigida contra o governo
Lula e o PT. A narrativa é tecida com o
instrumento da razão seletiva, que recorta e cola fragmentos de notícias e
artigos opinativos de fontes díspares.
O produto disso é a imagem sedutora
de uma conspiração permanente e inclemente, urdida segundo etapas temáticas definidas, com finalidades
golpistas.
A "intelectual orgânica" do PT não
está em silêncio. A pretexto de criticar
a mídia, ela produz uma narrativa que
procura o efeito persuasivo de negar a
existência real de uma organização
criminosa incrustada no governo e no
PT e engajada na corrupção das instituições políticas. Marilena Chaui está
dizendo que a realidade é uma invenção abominável dos meios de comunicação e, como antídoto contra os fatos, oferece a história de um complô
orquestrado desde a posse de Lula.
O texto de Chaui participa de um
campo discursivo mais vasto. O cientista político Wanderley Guilherme
dos Santos elaborou a tese do "golpe
branco das elites", que foi encampada
por parcela significativa da direção do
PT e das direções associadas da CUT e
da UNE. A Executiva Nacional petista
aprovou uma resolução, escrita por
Tarso Genro, na qual a mídia aparece
como agente de uma campanha "fascista" para "criminalizar o PT". José
Dirceu, na trilha percorrida antes por
Lula, nega as evidências da ação da
quadrilha no governo e repete o estribilho, criado pelo ministro-advogado
Thomaz Bastos, de que todo o escândalo limita-se à prática de caixa dois
de campanha. Entre a filosofia e a
ideologia, Chaui optou pela segunda,
renunciando à crítica política e emprestando sua autoridade intelectual
à estratégia da negação.
A carta de Chaui ensina que não é
possível acreditar na mídia, pois, "na
sociedade capitalista, os meios de comunicação são empresas privadas e,
portanto, pertencem ao espaço privado dos interesses de mercado".
Mas, numa polêmica com José Arthur Giannotti, em 2001, a filósofa escreveu que, "ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti
desqualifica politicamente algo mais
profundo: a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos". O que mudou? O
governo Lula começou em 2003.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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