São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Miséria da filosofia

O filósofo Renato Janine Ribeiro, que ocupa cargo de nomeação federal, afirmou que a mídia "não admite a diferença" e declarou-se "pasmo" com a publicação, pela Folha, da carta de Marilena Chaui aos seus alunos, um texto "privado, ainda que circule". A declaração opera no mesmo registro da carta, que não é o que parece ser.
Chaui atribuiu ao seu texto um estatuto privado, de reflexão pessoal no ambiente acadêmico, que é reforçado por menções à doença de sua mãe. Mas a carta tem como destinatário o público genérico dos alunos da filósofa, é postada na internet e aborda a crise política atual. Num lance de prestidigitação, a autora produz uma narrativa que deve ser pública o suficiente para cumprir uma função política, mas suficientemente privada para protegê-la da crítica pública. Ao deslocar o texto para a esfera pública, à qual de fato pertence, a Folha o submete ao escrutínio geral, o que provoca a ira de Janine Ribeiro.
O estatuto atribuído por Chaui a seu texto deve ser entendido como elemento auxiliar de produção de sentido. A carta acusa a mídia de fabricar o silêncio da filósofa, como parte de uma campanha deliberada de desinformação dirigida contra o governo Lula e o PT. A narrativa é tecida com o instrumento da razão seletiva, que recorta e cola fragmentos de notícias e artigos opinativos de fontes díspares. O produto disso é a imagem sedutora de uma conspiração permanente e inclemente, urdida segundo etapas temáticas definidas, com finalidades golpistas.
A "intelectual orgânica" do PT não está em silêncio. A pretexto de criticar a mídia, ela produz uma narrativa que procura o efeito persuasivo de negar a existência real de uma organização criminosa incrustada no governo e no PT e engajada na corrupção das instituições políticas. Marilena Chaui está dizendo que a realidade é uma invenção abominável dos meios de comunicação e, como antídoto contra os fatos, oferece a história de um complô orquestrado desde a posse de Lula.
O texto de Chaui participa de um campo discursivo mais vasto. O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos elaborou a tese do "golpe branco das elites", que foi encampada por parcela significativa da direção do PT e das direções associadas da CUT e da UNE. A Executiva Nacional petista aprovou uma resolução, escrita por Tarso Genro, na qual a mídia aparece como agente de uma campanha "fascista" para "criminalizar o PT". José Dirceu, na trilha percorrida antes por Lula, nega as evidências da ação da quadrilha no governo e repete o estribilho, criado pelo ministro-advogado Thomaz Bastos, de que todo o escândalo limita-se à prática de caixa dois de campanha. Entre a filosofia e a ideologia, Chaui optou pela segunda, renunciando à crítica política e emprestando sua autoridade intelectual à estratégia da negação.
A carta de Chaui ensina que não é possível acreditar na mídia, pois, "na sociedade capitalista, os meios de comunicação são empresas privadas e, portanto, pertencem ao espaço privado dos interesses de mercado".
Mas, numa polêmica com José Arthur Giannotti, em 2001, a filósofa escreveu que, "ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti desqualifica politicamente algo mais profundo: a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos". O que mudou? O governo Lula começou em 2003.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br


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