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TENDÊNCIAS/DEBATES
O projeto "Deus na escola" deve ser sancionado?
NÃO
Vetar, pela cidadania!
ROSELI FISCHMANN
O GOVERNADOR José Serra deve vetar o projeto de lei "Deus
na escola" porque é inconstitucional, violando direitos humanos:
contraria o princípio da laicidade do
Estado, viola o direito à igualdade e à
liberdade de consciência e de crença,
dos alunos e dos grupos religiosos.
Em que pesem os propósitos proclamados no projeto, a mera oferta do
ensino religioso como "conteúdo homogêneo para todas as crenças" a
crianças de seis anos, idade em que
iniciam o ensino fundamental, seria
uma forma de discriminação e opressão. Seria violação da dignidade, da liberdade e do respeito a que toda
criança tem direito, como expresso
no artigo 227 da Constituição Federal, pelo tipo de constrangimento e
conflito a que submeteria os alunos.
Um dos direitos humanos é que aos
pais cabe prioritariamente a escolha
do gênero de educação a dar aos filhos
-o que inclui educação religiosa e o
grupo do qual participará. Como poderia uma criança conviver sem conflito com um conteúdo que, ao oficialmente "homogeneizar" a diversidade,
seria diferente do que lhe é dado por
sua família e comunidade religiosa?
Os alunos do ensino fundamental
são consciências tenras, mais vulneráveis a atos que, sob o manto da boa
intenção, podem promover danos de
longa duração. Implantar a divindade
como "matéria" escolar, mediante o
conceito de que seria possível homogeneizar as religiões e espiritualidades como ato de Estado, pode desenvolver nos alunos disposição psicológica para discriminar e excluir todos
os que não se submetem a semelhante padrão homogêneo, levando à perda da capacidade crítica (que a educação deve promover) de identificar o
que é proposto como tirania, ao arrepio do pluralismo e da democracia.
Autores, como Allport, Adorno e
Kelman, indicam que a rejeição da
pluralidade leva a uma disposição psicológica para o totalitarismo e o autoritarismo, com repercussões profundas sobre o individual e o coletivo.
Mesmo propondo o ensino religioso como facultativo, o projeto é inconstitucional, ao estabelecer que o
Estado abandone a posição imparcial
que deve ter por ser laico para assumir o papel de doutrinador do tema
religioso. O projeto viola o direito à liberdade das organizações religiosas,
interferindo de forma inconstitucional na esfera que lhes é privada. Isso
porque estabelece o Estado como responsável pela definição de qual é a divindade -nome, atributos e desígnios- a ser sancionada como oficial e
estatal e, assim, ensinada às crianças
de todas as crenças.
Como se pode esperar que as religiões aceitem placidamente que seus
conteúdos sejam violados em sua integridade e singularidade para compor um conteúdo homogêneo?
Mesmo quem pouco conheça de religiões entenderá o absurdo de tentar
propor uma única divindade, em um
quadro em que mesmo as religiões
monoteístas, de tradição abraâmica,
não têm unanimidade teológica; ficaria aqui a pergunta sobre qual monoteísmo seria escolhido, no que parece
ser a proposta do projeto de lei.
Pois, ao escolher assim, o projeto
desconsidera o politeísmo, desrespeitando parcelas da população que praticam religiões de matriz africana; ignora crenças que não se referem à divindade, como o budismo.
Reforça a inaceitável estigmatização de ateus e o desconhecimento sobre agnósticos, violando o direito de
todos esses cidadãos de serem reconhecidos da forma como são e como
crêem ou não crêem, sem o risco de
serem banidos da esfera pública.
Pois não cabe ao Estado laico fazer
escolhas e definições religiosas, mas
proteger igualmente a escolha de
consciência e de crença de todos os cidadãos e cidadãs.
Já os artífices dessa criação do
Criador, segundo o projeto, seriam
um grupo de escolhidos (ou "ungidos"?), que teriam, assim, uma cidadania mais reconhecida que a dos demais, gesto que seria repetido por cada conselho de escola e cada professor, ao sabor de sua interpretação.
Observe-se que o artigo 19 da Constituição veda à União, aos Estados e
aos municípios tanto estabelecer cultos religiosos ou igrejas e subvencioná-los quanto criar distinções entre
brasileiros ou preferências entre si. É
dessa armadilha que o governador deve escapar, vetando o projeto de lei.
ROSELI FISCHMANN, 54, doutora e livre-docente, é professora do programa de pós-graduação em educação da USP e expert da Unesco para a Coalizão de Cidades contra
o Racismo, a Discriminação e a Xenofobia. Integrou a Comissão Especial de Ensino Religioso do Governo do Estado de São Paulo (1995-1996).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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