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JOSÉ SARNEY
Gaveta cheia
Em 1988 , quando estive na desaparecida União Soviética, incluí no
programa uma visita à famosa Academia de Ciências da Rússia, com sede
num palácio simbólico, onde Tolstoi,
vendo um de seus salões de sancas
douradas, imaginou o baile em que
Ana Karenina se entrega à sedução do
conde Vronski.
O presidente da Academia, questionado por mim como sobrevivera a literatura russa aos anos de silêncio do
stalinismo, respondeu-me: "nossas
gavetas estão cheias". Realmente,
quando caiu o Estado soviético e surgiu a liberdade, apareceram grandes
obras e se revelaram notáveis escritores. Aquele período não passou em
branco.
Lembro o fato para dizer que aqui
muito se falou sobre os anos de chumbo. Quando a liberdade voltou, nossas
gavetas estavam vazias. Nada de importante se publicou. Elio Gaspari resgata essa dívida e nos oferece um dos
maiores livros já escritos no Brasil,
que pode ser colocado, como lembrou
Kenneth Maxwell, no mesmo nível de
"Um Estadista do Império", de Joaquim Nabuco. Não precisamos esperar os três volumes que faltam para saber que o livro de Elio Gaspari é obra
monumental, em que se mergulha, de
página em página, cada vez mais fascinado pela estrutura, pelo texto, pela
erudição, pelo meticuloso trabalho de
pesquisa e análise de fatos, sentimentos, instituições, pessoas. Elio, como
Euclides da Cunha em "Os Sertões",
vai aos menores detalhes, sem perder
as grandes linhas. Os pormenores tornam-se importantes para completar o
todo. Os perfis são extraordinários e,
em cada um, em desenhos simples,
curvas delicadas e traços de expressão,
revelam-se caracteres, como desenhos
de Picasso, na melhor fase dos traços
finos.
"A ditadura envergonhada" e "A ditadura escancarada" fazem parte de
um conjunto de cinco volumes, tomografia do período militar de 64 a 85,
que, em centímetros, faz cortes de cada momento, trabalhados em minúcias, achegas de abonações, depoimentos, testemunhos, numa teia cuidadosa que nos leva a instantes de
descoberta do ridículo, ou de revolta,
ou a uma desesperada mágoa de tempos que, mesmo sendo história, provocam condenações e perplexidades.
Cito um microscópico detalhe: a demissão do general Frota do Ministério
do Exército, construída com extrema
competência e conhecimento das artes de caserna de Geisel e Golbery. Elio
faz o diagnóstico preciso: ali está o instante inaugural da abertura, coisa que
passava ao largo dos outros fatos dramáticos, como as mortes de Herzog e
Fiel. Isso justifica o capítulo inicial,
que mostra a luta do presidente da República para investir-se no cargo, até
então exercido como delegação do
aparato militar.
É uma obra que se lê como se fosse a
trama de uma novela, e é história, um
tratado de anatomia do poder, um ensaio sobre a alma dos homens, com
suas sutilezas e desvios.
Geisel e Golbery prestaram um
grande serviço ao país. Motivaram e
abasteceram Elio Gaspari a escrever
um dos livros mais importantes da
história do Brasil. Passamos a ter mais
uma referência maior na linha dos
mestres. Varnhagem, Capistrano, Calógeras, Nabuco, Tobias Monteiro, e,
agora, esse grande livro, consulta obrigatória a todos os que desejem saber
como se escreve, pesquisa e se faz história da História do Brasil.
Muitas vezes cobrei de Elio o livro.
Depois, não o fiz mais, certo de que
abandonara o projeto. Há um ano ele
me avisou de que dois volumes estavam prontos. Chegaram para ficar.
Foi muito pouco 18 anos para escrever
obra tão importante e definitiva.
Elio Gaspari encheu as gavetas vazias.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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