São Paulo, sexta-feira, 29 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SARNEY

Gaveta cheia

Em 1988 , quando estive na desaparecida União Soviética, incluí no programa uma visita à famosa Academia de Ciências da Rússia, com sede num palácio simbólico, onde Tolstoi, vendo um de seus salões de sancas douradas, imaginou o baile em que Ana Karenina se entrega à sedução do conde Vronski.
O presidente da Academia, questionado por mim como sobrevivera a literatura russa aos anos de silêncio do stalinismo, respondeu-me: "nossas gavetas estão cheias". Realmente, quando caiu o Estado soviético e surgiu a liberdade, apareceram grandes obras e se revelaram notáveis escritores. Aquele período não passou em branco.
Lembro o fato para dizer que aqui muito se falou sobre os anos de chumbo. Quando a liberdade voltou, nossas gavetas estavam vazias. Nada de importante se publicou. Elio Gaspari resgata essa dívida e nos oferece um dos maiores livros já escritos no Brasil, que pode ser colocado, como lembrou Kenneth Maxwell, no mesmo nível de "Um Estadista do Império", de Joaquim Nabuco. Não precisamos esperar os três volumes que faltam para saber que o livro de Elio Gaspari é obra monumental, em que se mergulha, de página em página, cada vez mais fascinado pela estrutura, pelo texto, pela erudição, pelo meticuloso trabalho de pesquisa e análise de fatos, sentimentos, instituições, pessoas. Elio, como Euclides da Cunha em "Os Sertões", vai aos menores detalhes, sem perder as grandes linhas. Os pormenores tornam-se importantes para completar o todo. Os perfis são extraordinários e, em cada um, em desenhos simples, curvas delicadas e traços de expressão, revelam-se caracteres, como desenhos de Picasso, na melhor fase dos traços finos.
"A ditadura envergonhada" e "A ditadura escancarada" fazem parte de um conjunto de cinco volumes, tomografia do período militar de 64 a 85, que, em centímetros, faz cortes de cada momento, trabalhados em minúcias, achegas de abonações, depoimentos, testemunhos, numa teia cuidadosa que nos leva a instantes de descoberta do ridículo, ou de revolta, ou a uma desesperada mágoa de tempos que, mesmo sendo história, provocam condenações e perplexidades.
Cito um microscópico detalhe: a demissão do general Frota do Ministério do Exército, construída com extrema competência e conhecimento das artes de caserna de Geisel e Golbery. Elio faz o diagnóstico preciso: ali está o instante inaugural da abertura, coisa que passava ao largo dos outros fatos dramáticos, como as mortes de Herzog e Fiel. Isso justifica o capítulo inicial, que mostra a luta do presidente da República para investir-se no cargo, até então exercido como delegação do aparato militar.
É uma obra que se lê como se fosse a trama de uma novela, e é história, um tratado de anatomia do poder, um ensaio sobre a alma dos homens, com suas sutilezas e desvios.
Geisel e Golbery prestaram um grande serviço ao país. Motivaram e abasteceram Elio Gaspari a escrever um dos livros mais importantes da história do Brasil. Passamos a ter mais uma referência maior na linha dos mestres. Varnhagem, Capistrano, Calógeras, Nabuco, Tobias Monteiro, e, agora, esse grande livro, consulta obrigatória a todos os que desejem saber como se escreve, pesquisa e se faz história da História do Brasil.
Muitas vezes cobrei de Elio o livro. Depois, não o fiz mais, certo de que abandonara o projeto. Há um ano ele me avisou de que dois volumes estavam prontos. Chegaram para ficar. Foi muito pouco 18 anos para escrever obra tão importante e definitiva.
Elio Gaspari encheu as gavetas vazias.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Marcelo Beraba: Autonomia ou cooptação
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.