São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deixa o homem trabalhar?

MARCO ANTONIO VILLA

Pelos compromissos de 2006, fica evidente que Lula começou a abolir as sextas e segundas da agenda ou a ter só um despacho nesses dias

NO PRIMEIRO ano da Guerra do Peloponeso, Péricles fez um célebre discurso. Recordou aos críticos que "não é o debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora da ação".
O conservadorismo tupiniquim incorporou essa fala antidemocrática -no sentido ateniense. O discurso foi migrando até chegar ao PT. A candidatura Lula assumiu e propalou com ardor o slogan: "Deixa o homem trabalhar". Era uma evidente resposta às críticas da oposição. O discurso conservador -ao estilo espartano, para voltar à Grécia- enfatizava o trabalho árduo do presidente.
Procurei a fonte disponível para checar se o slogan tinha alguma base: a agenda presidencial (pelo site www.presidencia.gov.br). Já tinha realizado essa pesquisa no ano passado e esperava, sinceramente, que o ritmo de trabalho do presidente tivesse entrado nos eixos. Ledo engano. A agenda é confusa, não há lógica no cotidiano presidencial. É difícil até entender o critério dos deslocamentos.
Muitas vezes, em prazo curto, foram realizadas viagens para o mesmo Estado, quando poderia haver só um deslocamento, diminuindo custos e obtendo maior eficiência. Outras vezes, a viagem é para cumprir um desejo do presidente, como se o país estivesse voando -algo especialmente difícil atualmente- em céu de brigadeiro. Um exemplo foi o deslocamento da comitiva presidencial para São Paulo simplesmente para inaugurar o Memorial do Corinthians.
Observando os compromissos de 2006, ficou evidente que o presidente começou a abolir as segundas e as sextas-feiras da agenda ou a ter só um despacho nesses dias. A jornada de trabalho também diminuiu. Em alguns dias, a agenda iniciou às 10h, foi interrompida para o almoço e, às 16h, o expediente foi encerrado.
Lula quase acabou com aquelas reuniões de todo o ministério -foram sete em 2003, cinco no ano seguinte e, em 2005, quatro. Em 2006, fez só um desses encontros, o que foi saudável, mas não considerou relevante a reunião reduzida de ministros quando houvesse um assunto de interface entre os ministérios, revelando descaso por temas administrativos.
Lula insistiu na importância da manutenção de várias secretarias com status de ministério, dada a relevância dos "movimentos sociais". Mas a agenda o desmente. O MST, além de outros "movimentos sociais", não foi recebido nenhuma vez, e o ministro do Desenvolvimento Agrário, apenas uma. E a ministra Matilde Ribeiro (Políticas de Promoção da Igualdade Racial) teve a atenção presidencial em só um encontro de meia hora no ano todo. Pior sorte teve a Comissão de Ética Pública, vinculada diretamente à Presidência: não foi recebida sequer uma vez. É compreensível...
Já Ricardo Berzoini foi um homem de sorte. Como presidente do PT, esteve no gabinete cinco vezes em apenas seis meses. Curiosamente, quando foi ministro da Previdência Social, se encontrou somente uma vez com o presidente. Donde se deduz que, para Lula, o PT é mais importante que os milhões de aposentados.
Entre os congressistas, o recordista foi Renan Calheiros: seis entrevistas. Que inveja a ministra Nilcéa Freire (Políticas para as Mulheres) deve ter do senador: em dois anos e meio, nunca foi recebida pelo presidente.
Quando teve início a campanha, a agenda, que já era caótica, ficou ainda mais sem sentido. E vazia. Em agosto, em diversos dias, o expediente terminou às 12h30 (como no dia 2); em outros começou, às 11h, 12h ou 12h30 (como nos dias 7, 10, 14, 18 e 28). Em setembro, a situação se agravou. Poucos despachos. E, quando eram realizados, não passaram de atividades eleitorais, como em 21/9, quando recebeu "personalidades do mundo do livro" e assinou o decreto do cão-guia.
Se a situação já era preocupante, entre o primeiro e o segundo turno ficou ainda pior. Do dia 6 até o dia 29/ 10, estão registrados somente 16 compromissos. Nesses 24 dias, Lula teve uma média de 0,6 compromisso/dia.
A eficácia do trabalho é altamente questionável. A 6/10, teve um encontro de meia hora com o presidente eleito do México (única atividade daquele dia); no dia 24, o solitário registro foi a condecoração de Felipe Massa realizada no aeroporto de Congonhas. Ou seja, durante o mês de outubro, o governo ficou acéfalo. A análise da agenda revela que o governo não tem rumo, que as atividades presidenciais são mal planejadas e que o presidente mais parece chefe de estado que chefe de governo. Em um país que está estagnado a um quarto de século, é muito grave.


MARCO ANTONIO VILLA, 50, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de, entre outras obras, "Jango, um perfil (1945-1964)".

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