São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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Araponga e Cia. Ltda.

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Essa Joaninha é uma peça... Se não existisse, deveria ser inventada. Sempre me divirto com a sua ironia, que só é ultrapassada pela sua graça no falar.
No meio do tiroteio de tantas denúncias, calúnias e escândalos da semana que passou, a Joaninha me telefona para conversar sobre os nossos tempos de escola e para lembrar o professor Gigovatti, que lecionava biologia com o entusiasmo de quem se sentia dono do mundo animal.
A Joaninha é incrível. Ela ainda guarda todos os cadernos e livros do velho ginásio. Sem ter o que fazer, pois está aposentada do magistério há 15 anos, decidiu rever as anotações sobre o ciclo de vida e os hábitos da araponga -essa linda ave que todos conhecem, de bico grande (e guloso), penas pretas, peito branco, cabeça marrom e uma espécie de fios de barba que embelezam o seu pescoço.
O traço mais conhecido da araponga é o seu canto estridente, para não dizer escandaloso, que se parece com o martelo do ferreiro batendo na bigorna fria.
A última coisa que a araponga faz na vida é ser discreta. "Low profile" não é com ela. Onde está, todos a vêem. Quando canta, todos a ouvem.
Outra característica interessante é a sua predileção por voar nas alturas. A araponga não gosta de vôos rasantes e muito menos de descer ao chão. Costuma pousar no alto das árvores, onde canta o dia inteiro, para atrair as fêmeas.
Quando uma fêmea se aproxima, o macho dá um grito ainda mais forte. Se isso agradar, os dois se transferem para o "galho de acasalamento" e ali consumam o ato de amor. É a única situação em que a araponga se mantém em silêncio.
Terminada a sessão, o macho volta para o "galho da cantoria", à espera de outra fêmea, com a qual repetirá o ritual, se for do agrado de ambos.
Perguntei à Joaninha sobre a razão da escolha daquele tema, ao que ela acrescentou com deboche:
"Antonio, as pessoas precisam conhecer os pássaros com os quais convivem. Assim como é desagradável comer gato por lebre, é perigoso confundir araponga com andorinha."
Para os que trabalham perto de viveiros, disse ela, os ornitólogos recomendam colocar a araponga em separado, pois ela é briguenta e agressiva. Quando entra na roda, faz muitos estragos.
Para os que se incomodam com os decibéis, o último pássaro a escolher é a araponga. A sua conduta é uma sinfonia irritante, e o tema melódico, um perturbador escândalo.
Para os que precisam de tranquilidade, convém fugir da araponga, pois ela se assusta à toa e acaba assustando os outros. Quando foge ou se esconde, é difícil de ser rastreada.
"O que eu aprendi com o Gigovatti, caro Antonio, ensinei aos meus alunos. Os que aprenderam a lição defendem-se bem das arapongas. Os que gostam delas sabem como tratá-las. Na vida, mais importante do que ter conhecimentos é ter ética de conduta. Até a próxima, meu caro amigo."


Antonio Ermírio de Moraes escreve aos domingos nesta coluna.



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