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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Guerras inconclusas

CARLOS DE MEIRA MATTOS

A humanidade encerra o ano de 2003 sofrendo angustiantes incertezas na sua sempre renovada esperança de vir a alcançar a paz e a harmonia entre os povos do planeta.
O cenário mundial destes últimos 20 anos mostra-se profundamente conturbado pelas graves sequelas das guerras inconclusas -Tchetchênia, Iugoslávia, Bósnia, Kosovo, Afeganistão, Iraque e outras menores. Todas prenunciando inquietantes desdobramentos.
Já se foi o tempo em que a potência militar vencedora podia desfrutar com tranquilidade das benesses de sua superioridade bélica. As teorias de guerra não escaparam à avalanche renovadora que varre todos os setores da atividade humana. Nas guerras da atualidade, mais difícil do que derrotar militarmente o inimigo é a complexa, dura e dispendiosa tarefa de ocupação e pacificação do seu território.
Os especialistas em psicologia coletiva destacam duas causas principais para esse fenômeno que se tornou comum, o da insubordinação, da rebeldia, manifestado por minorias atuantes dos países derrotados no campo militar: o novo poder de mundialização da informação, que alterou profundamente o comportamento das comunidades, e o ressurgimento dos mitos étnicos e religiosos, agora impregnados por fanatismos extremados.
Os exemplos mais vivos desse fenômeno de rebeldia contra os vencedores, imposto por grupos guerrilheiros dos países ocupados, encontramos com maior evidência, atualmente, na Tchetchênia, no Afeganistão e no Iraque.
O Exército russo derrotou, há cerca de três anos, o levante separatista da Tche-tchênia, mas até hoje não conseguiu pacificar o país, dominando a guerrilha interna, o que vem custando a Moscou um preço alto em sacrifícios de vidas, perdas materiais e dispêndio financeiro. Os rebeldes tchetchenos levam seus atos de violência ao interior da própria Rússia e à sua capital, que vive o constante sobressalto da onda crescente dos atentados terroristas.
A guerra no Afeganistão -primeira resposta militar aos ataques do 11 de Setembro- teve como objetivo derrotar o governo do país dominado pela seita fundamentalista islâmica dos talebans e considerado "santuário" do líder máximo do terrorismo, Bin Laden. Sua fase militar foi resolvida em poucas semanas. As Forças Armadas norte-americanas, autorizadas pela ONU, com o apoio de grupos guerrilheiros locais, derrotaram sem maiores dificuldades as forças talebans; seu governo se desfez. Apoiado pela maioria das tribos locais, foi elevado a presidente da República o líder afegão Hamid Karzai.


Já se foi o tempo em que a potência militar vencedora podia desfrutar com tranquilidade das benesses de sua superioridade bélica
Passados dois anos, o novo governo de Cabul, apoiado política e militarmente pelos americanos, não conseguiu restabelecer a ordem no país, que continua devastado por desordens, choques violentos entre grupos locais e constantes atentados terroristas contra militares americanos e suas instalações.
O Iraque vive neste momento sob o impacto da captura de Saddam Hussein. As consequências da prisão do ex-ditador quanto ao arrefecimento da virulência dos atentados não podem ainda ser avaliadas. Ali, depois de uma vitória militar fácil das forças da coalizão Estados Unidos-Inglaterra, a tarefa de ocupar e pacificar o país vem se agravando dia a dia. As forças da coalizão, posteriormente favorecidas pela participação da ONU e reforçadas por contingentes poloneses, italianos, espanhóis, japoneses e outros menores, passados oito meses de ocupação, não conseguiram encontrar uma forma de administração e pacificação para o país, mergulhado na ação terrorista diária contra os ocupantes estrangeiros.
Além dos atentados contra militares, instalações e aeronaves norte-americanos e ingleses, que já acumularam um número de mortos muito superior ao registrado durante as operações militares, todos os outros ocupantes, aliados da coalizão, já foram vítimas de ataques terroristas no território iraquiano e nos seus próprios países, inclusive a ONU -quando foi morto o seu chefe de missão, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello.
Diante de um cenário mundial tão desolador, é sempre bom encontrar a palavra confortadora do cientista francês Jean Claude Ruano-Borbalon, diretor da revista "Sciences Humaines": "Os conflitos existem, mas os progressos e as transformações inovadoras também estão presentes".


Carlos de Meira Mattos, 90, doutor em ciência política, general reformado do Exército, é veterano da Segunda Guerra Mundial e conselheiro da Escola Superior de Guerra.


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