São Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Paradigma de logística

ELIEZER BATISTA

Os anos 60 marcaram o início da evolução para o transporte de granéis sólidos e líquidos. Mais importante do que isso, marcaram também a transformação de uma distância física em distância econômica. Esse colossal salto, de abrangência mundial, foi vencido pela colaboração entre a Vale do Rio Doce e as 11 usinas de aço japonesas.
No início dos anos 60, a Vale havia concluído a modernização da ferrovia Vitória-Minas, cuja capacidade de transporte fora aumentada consideravelmente. Entretanto a empresa havia sido concebida como um sistema que compreendia a produção de minério de ferro, mais transporte ferroviário e instalações portuárias, mais transporte marítimo e distribuição no destino. Como um sistema, o gargalo se deslocou para o porto. O programa original de produção e exportação da empresa era de apenas 1,5 milhão de toneladas/ano.
A essa altura estava-se além disso, e as instalações portuárias não acompanharam esse fato, ao mesmo tempo que surgia, com toda força, a necessidade simultânea de conquistar novos mercados. O canal de acesso ao porto de Pela Macacos (dentro do canal) necessitava de dragagens, derrocagem e balizamento à noite etc. Além disso, problemas de dragagem da barra vieram a constituir grandes obstáculos, a ponto de chegarmos, em um certo período, a redimir a escala para navios de apenas 10 mil DWT (toneladas por peso morto), como os Liberty.


Ninguém no exterior quis financiar o projeto do nosso porto de Tubarão, pois não acreditavam nele


Com todos os esforços de melhoria efetuados na época, não conseguíamos ir além de 28 mil DWT. Naquele período, o maior graneleiro do mundo era o Ore Chef, do Navigan Corp., subsidiária de navegação da US Steel.
O sistema não apresentava, assim, confiabilidade. E também não era competitivo para mercados novos, como o japonês, que eram muito distantes. Chegamos a usar navios Liberty para o Japão, mas em caráter experimental, para tratar nosso minério nas usinas japonesas.
Dispondo de uma enorme reserva mineral de alta qualidade e com os atributos técnicos da Vitória-Minas consideravelmente melhoradas, a necessidade de romper esse impasse para o crescimento da empresa se tornava um gigantesco desafio. Além disso, já naqueles tempos as necessidades de exportação para a melhoria das contas externas assemelhavam-se à situação do Brasil de hoje, em escala reduzida. Estávamos diante de um enorme problema de logística, aparentemente insolúvel.
Ao concentrarmos os estudos para o mercado, deparamos com uma situação parecida no Japão, que lutava para reerguer sua indústria siderúrgica, quase destruída durante a Segunda Guerra. A complementaridade era evidente, a ponto de entusiasmar ambos os lados para somarem forças na resolução do problema.
Os estudos demonstraram que a viabilidade da proposição só seria exeqüível para:
navios de um "minimum minimorum" de 100 mil DWT. Assim mesmo, com a versatilidade para transportar petróleo do Golfo Pérsico de retorno. E tendo que construir, para receber os potenciais novos grandes graneleiros, três grandes portos no Japão (exigidos pela geografia das usinas japonesas) e um no Brasil (Tubarão);
a necessidade de contratos a longo prazo para grandes quantidades (escala) de minério, para a garantia do financiamento;
design adequado para esses navios, assim como materiais (aço etc.). Como eles não existiam para essa escala, isso passou a ser um dos grandes obstáculos.
Entretanto a motivação era tão forte que conseguimos um esforço conjunto surpreendente. Nenhum estaleiro do Ocidente aceitou o desafio da construção desses navios. Os japoneses o fizeram sob a liderança do famoso dr. Shintao, talvez um dos maiores projetistas de navios até então.
O gargalo aqui se deslocou para o financiamento. Ninguém no exterior quis financiar o projeto do nosso porto de Tubarão, pois não acreditavam nele. Então surge a figura do ministro da Fazenda do governo Jango, Santiago Dantas, a quem passamos a dever esse grande salto que veio representar a grande mudança de paradigma de logística de graneleiros do mundo.
Como decorrência surgiu o porto de Tubarão, que hoje recebe navios de mais de 300 mil DWT em sua segunda etapa (na primeira, eram navios de 180 mil DWT).
Fundou-se a Docenave, apoiada em contrato de longo prazo, em que tinham 40% CIF (a empresa chegou a ser a terceira maior empresa marítima de granéis do mundo).
Multiplicaram-se os navios graneleiros-petroleiros, dos quais a Docenave chegou a ter a maior frota mundial.
Estendeu-se a escala dos navios dessas categorias para os "tankers", que chegaram até 500 mil DWT.
Surgiram navios como o Bergstahl, de 380 mil DWT, que faz o percurso Ponta da Madeira (Maranhão e Roterdã) em "shuttle service", com custos baixíssimos.
O conceito estendeu-se para outras partes do mundo, como Roterdã, Bakar, Toronto etc., com muita rapidez.
Surgiram, é claro, limites para a escala, sobretudo em relação aos portos. Há um número limitado de portos para acesso a grandes navios.
As siderúrgicas deslocaram-se para a costa. E a produtividade do transporte de minério de ferro multiplicou-se por cem vezes, se compararmos um Liberty com o Bergstahl, por exemplo.
Os novos portos passaram a ser utilizados simultaneamente por grãos, a exemplo do caso da soja.
E abriram-se novas perspectivas, para nichos específicos, de cargas combinadas com grande êxito nos custos de logística marítima.
Eliezer Batista da Silva, 80, engenheiro, é consultor da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro). Foi presidente da Companhia Vale do Rio Doce (1961-64 e 1979-86), ministro das Minas e Energia (governo João Goulart) e secretário de Assuntos Estratégicos (governo Collor).

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