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TENDÊNCIAS/DEBATES
Memórias do século passado
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
Eventual ascensão de Delfim Netto ao governo Lula seria flagrante traição política, um acinte a uma parte dos que combateram a ditadura
NO NOTICIÁRIO sobre o novo
governo, um nome aparece
freqüentemente: Delfim Netto. Ungido por consagradora reeleição e índice de aprovação jamais igualados, Lula deve pensar que pode nomear quem quiser em qualquer lugar.
Assim, com a admiração unânime dos
povos e aplauso geral da nação, Delfim Netto poderá ser novamente alçado a um ministério. Desta vez, num
governo presidido pelo PT.
A eventualidade dessa nomeação
suscitou alguns sarcasmos e perplexidades. Fernando Henrique, após classificar Delfim Netto de "algoz da ditadura", ironizou a nova amizade entre
o ex-ministro e Lula. Mas suas palavras fariam mais sentido se ele próprio não tivesse nomeado Pratini de
Moraes -também integrante do governo do sinistro ditador Médici- no
seu segundo mandato na Presidência
e não tivesse introduzido Jarbas Passarinho, também estadista do AI-5,
no conselho político de sua campanha de reeleição, em 1998.
Quanto às perplexidades externadas por uns poucos incautos, a resposta veio do senador Eduardo Suplicy. Declarando que a presença de
Delfim Netto no próximo governo é
plausível e até "positiva", Suplicy
completou, num discurso recente no
Senado: "Certamente, Antonio Delfim Netto tem uma visão crítica de tudo aquilo que se passou ao longo dos
anos da ditadura militar".
O senador Suplicy é sabidamente
um homem de boa-fé. Aliás, o advérbio "certamente" introduz a noção de
probabilidade, mas não de certeza,
condicionando sua frase.
A prudência, de fato, se impõe. Na
circunstância, não se conhece declaração pública de Delfim Netto que
sustente semelhante "visão crítica".
Não há registro de alguma divulgação
em que o ex-ministro tenha emitido
juízo negativo sobre os dois monstrengos que ajudou convictamente a
parir: o Ato Institucional nš 5 e a
Oban [Operação Bandeirantes, organização paramilitar de repressão
criada em 1969 que se transformou
em órgão de tortura]. Muito pelo contrário. Em várias ocasiões, o ex-ministro tem reiterado sua defesa do arbítrio da ditadura. Num depoimento
incluído nos volumes sobre o golpe de
1964 editados em 2003 pela Biblioteca do Exército, o ex-ministro exprime
sua interpretação autoritária sobre
nossa história recente, tratando com
menoscabo a oposição à ditadura.
Na sua recente campanha fracassada a deputado federal pelo PMDB -o
partido de Ulysses Guimarães-, Delfim Netto fez passear, pelo bairro
paulistano dos Jardins, ciclistas arvorando seu indefectível slogan: "Delfim, eu era feliz e não sabia!". Na altura em que a direita brasileira punha a
mão no peito e bradava compungida
que "o fim não justifica os meios",
Delfim Netto difundia seu slogan anti-republicano, anticonstitucional,
fazendo apologia da ditadura e do
AI-5. Mais uma vez se verifica o adágio de Oscar Wilde: "Quem fala a verdade sempre é descoberto!".
Qual o motivo para alardear agora
um slogan grotesco e meio anacrônico? A fidelidade ao passado e às campanhas eleitorais conduzidas desde
1986 sob o mesmíssimo lema, que pareceu nunca incomodar ninguém?
Talvez. Nessa hipótese, o slogan teria
o mesmo fundamento intelectual que
o tom frio e irônico usado pelo ex-ministro para narrar episódios escabrosos da ditadura, como vem publicado
no livro "A Ditadura Escancarada", de
Elio Gaspari.
Tais juízos sobre a ditadura, que
hoje se nos afiguram cínicos, poderão,
com a benevolência que o tempo reserva aos homens públicos, compor a
imagem de um personagem cético sobre seus contemporâneos. Haverá
então quem se habilite a escrever
uma biografia menos severa sobre o
sr. Delfim Netto. Resta a lidar com o
presente. Para o interessado, o fato de
não participar do próximo governo
não será de grande incômodo. Delfim
Netto continuará desfrutando seu
prestígio de comensal do Alvorada, de
intérprete da economia brasileira e
de colunista prolífico e muitas vezes
pertinente que discorre sobre os destinos do capitalismo e do mundo.
Para nós -certamente uma pequena minoria-, a eventual ascensão do
sr. Delfim Netto ao governo de Lula
configuraria uma flagrante traição
política. Seria um acinte a uma parte
dos que combateram a ditadura e ajudaram o PT a nascer e a crescer. Seria
um desrespeito aos pais, aos irmãos e
aos filhos daqueles que tiveram suas
vidas e seus cadáveres roubados pela
tirania do AI-5 e da Oban. Dessa falta
política e moral, nenhuma reeleição,
nenhum índice de aprovação poderá
jamais salvar o governo Lula.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, 61, é professor titular de
história do Brasil da Universidade de Paris - Sorbonne, autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras) e editor do
blog http://sequenciasparisienses.blogspot.com .
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