São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Memórias do século passado

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

Eventual ascensão de Delfim Netto ao governo Lula seria flagrante traição política, um acinte a uma parte dos que combateram a ditadura

NO NOTICIÁRIO sobre o novo governo, um nome aparece freqüentemente: Delfim Netto. Ungido por consagradora reeleição e índice de aprovação jamais igualados, Lula deve pensar que pode nomear quem quiser em qualquer lugar. Assim, com a admiração unânime dos povos e aplauso geral da nação, Delfim Netto poderá ser novamente alçado a um ministério. Desta vez, num governo presidido pelo PT.
A eventualidade dessa nomeação suscitou alguns sarcasmos e perplexidades. Fernando Henrique, após classificar Delfim Netto de "algoz da ditadura", ironizou a nova amizade entre o ex-ministro e Lula. Mas suas palavras fariam mais sentido se ele próprio não tivesse nomeado Pratini de Moraes -também integrante do governo do sinistro ditador Médici- no seu segundo mandato na Presidência e não tivesse introduzido Jarbas Passarinho, também estadista do AI-5, no conselho político de sua campanha de reeleição, em 1998.
Quanto às perplexidades externadas por uns poucos incautos, a resposta veio do senador Eduardo Suplicy. Declarando que a presença de Delfim Netto no próximo governo é plausível e até "positiva", Suplicy completou, num discurso recente no Senado: "Certamente, Antonio Delfim Netto tem uma visão crítica de tudo aquilo que se passou ao longo dos anos da ditadura militar".
O senador Suplicy é sabidamente um homem de boa-fé. Aliás, o advérbio "certamente" introduz a noção de probabilidade, mas não de certeza, condicionando sua frase. A prudência, de fato, se impõe. Na circunstância, não se conhece declaração pública de Delfim Netto que sustente semelhante "visão crítica".
Não há registro de alguma divulgação em que o ex-ministro tenha emitido juízo negativo sobre os dois monstrengos que ajudou convictamente a parir: o Ato Institucional nš 5 e a Oban [Operação Bandeirantes, organização paramilitar de repressão criada em 1969 que se transformou em órgão de tortura]. Muito pelo contrário. Em várias ocasiões, o ex-ministro tem reiterado sua defesa do arbítrio da ditadura. Num depoimento incluído nos volumes sobre o golpe de 1964 editados em 2003 pela Biblioteca do Exército, o ex-ministro exprime sua interpretação autoritária sobre nossa história recente, tratando com menoscabo a oposição à ditadura.
Na sua recente campanha fracassada a deputado federal pelo PMDB -o partido de Ulysses Guimarães-, Delfim Netto fez passear, pelo bairro paulistano dos Jardins, ciclistas arvorando seu indefectível slogan: "Delfim, eu era feliz e não sabia!". Na altura em que a direita brasileira punha a mão no peito e bradava compungida que "o fim não justifica os meios", Delfim Netto difundia seu slogan anti-republicano, anticonstitucional, fazendo apologia da ditadura e do AI-5. Mais uma vez se verifica o adágio de Oscar Wilde: "Quem fala a verdade sempre é descoberto!".
Qual o motivo para alardear agora um slogan grotesco e meio anacrônico? A fidelidade ao passado e às campanhas eleitorais conduzidas desde 1986 sob o mesmíssimo lema, que pareceu nunca incomodar ninguém? Talvez. Nessa hipótese, o slogan teria o mesmo fundamento intelectual que o tom frio e irônico usado pelo ex-ministro para narrar episódios escabrosos da ditadura, como vem publicado no livro "A Ditadura Escancarada", de Elio Gaspari.
Tais juízos sobre a ditadura, que hoje se nos afiguram cínicos, poderão, com a benevolência que o tempo reserva aos homens públicos, compor a imagem de um personagem cético sobre seus contemporâneos. Haverá então quem se habilite a escrever uma biografia menos severa sobre o sr. Delfim Netto. Resta a lidar com o presente. Para o interessado, o fato de não participar do próximo governo não será de grande incômodo. Delfim Netto continuará desfrutando seu prestígio de comensal do Alvorada, de intérprete da economia brasileira e de colunista prolífico e muitas vezes pertinente que discorre sobre os destinos do capitalismo e do mundo.
Para nós -certamente uma pequena minoria-, a eventual ascensão do sr. Delfim Netto ao governo de Lula configuraria uma flagrante traição política. Seria um acinte a uma parte dos que combateram a ditadura e ajudaram o PT a nascer e a crescer. Seria um desrespeito aos pais, aos irmãos e aos filhos daqueles que tiveram suas vidas e seus cadáveres roubados pela tirania do AI-5 e da Oban. Dessa falta política e moral, nenhuma reeleição, nenhum índice de aprovação poderá jamais salvar o governo Lula.


LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, 61, é professor titular de história do Brasil da Universidade de Paris - Sorbonne, autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras) e editor do blog http://sequenciasparisienses.blogspot.com .


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