São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Relações homoafetivas e opressão da maioria

MARIA CLAUDIA BUCCHIANERI PINHEIRO


É a partir da delimitação de direitos fundamentais que se evita que a prática da democracia se desnature em ditadura da maioria

NAS ELEIÇÕES americanas de 4/11, foi aprovada, na Califórnia, a proposição 8, emenda constitucional de iniciativa popular voltada a "eliminar o direito ao casamento de casais do mesmo sexo".
Não obstante proposições semelhantes tenham sido aprovadas nos Estados da Flórida e do Arizona, a vitória da proposição 8 despertou reações apaixonadas na opinião pública local, motivou atos de vandalismo em igrejas mórmons e gerou o ajuizamento de ações na Suprema Corte da Califórnia, que já admitiu os processos e a eles aplicou um "fast track".
Muitas dessas reações se devem ao fato de que, seis meses antes, aquele mesmo tribunal já havia declarado inconstitucional lei que limitava o direito ao casamento a pessoas do mesmo sexo. A partir daí, milhares de casais homossexuais contraíram legitimamente o matrimônio.
Inconformados com os resultados das urnas, casais homossexuais e grupos de defesa dos direitos civis argüiram na Suprema Corte da Califórnia a inconstitucionalidade da proposição. Isso porque a Constituição estadual apenas admite iniciativa popular para fins de "emenda", mas, para os autores, a proposição 8 traz verdadeira "revisão", pois atinge valores sensíveis à Constituição, como a liberdade e a igualdade. As revisões constitucionais, diferentemente das emendas, não podem ser deflagradas pela iniciativa popular e dependem do apoio de dois terços dos membros de cada uma das Casas legislativas.
Apesar de a distinção entre emendas e revisões ser indiferente à atual realidade brasileira, pois a Constituição Federal não admite nenhuma alteração em seu texto por iniciativa popular, a controvérsia instaurada na Califórnia suscita relevantíssimas questões sobre a imperiosidade de proteger a esfera jurídica de membros de grupos minoritários contra investidas abusivas, autoritárias e opressoras levadas a efeito por maiorias sociais e políticas.
A razão de ser da previsão constitucional de direitos fundamentais centra-se na necessidade de subtrair do poder de disposição das maiorias determinados valores que são centrais e que atribuem identidade à carta política. É a partir da delimitação de direitos fundamentais que se evita que a prática da democracia se desnature em verdadeira ditadura da maioria.
Admitir que um direito fundamental seja subtraído de um grupo vulnerável em razão de ato normativo de iniciativa popular significa transferir para a maioria o poder de delimitar o alcance de direitos básicos das minorias, em claro desrespeito à natureza contramajoritária que é inerente aos direitos fundamentais e em violação àquele núcleo de valores que confere essência à ordem constitucional.
Além disso, a orientação sexual de cada indivíduo jamais poderá se qualificar como requisito de acesso a determinado direito fundamental. Valores e tradições socialmente arraigados não podem, num ordenamento fundado na igual dignidade de todos, legitimar a restrição a direito fundamental, sobretudo quando se considera que, no caso, são intimamente vinculados ao direito fundamental ao casamento os direitos à liberdade de escolha, à intimidade, à livre formação da personalidade e, acima de tudo, o direito à busca da felicidade.
A proposição 8, ao positivar, na Constituição, diferenciações individuais fundadas na orientação sexual, compromete a verdadeira essência de um diploma constitucional, que deve ser concebido para declarar direitos e consagrar garantias e nunca para institucionalizar inconcebíveis juízos pessoais de discriminação.
É preciso ter presente, pois, que a "Constituição não pode controlar preconceitos sociais, mas também não pode tolerá-los. Preconceitos individuais e particulares podem muitas vezes se encontrar além do alcance da lei, mas a lei jamais poderá, direta ou indiretamente, conferir-lhes qualquer efeito" (Palmore v. Sidoti).
Registre-se, por fim, o alerta do Justice Kennedy, feito no caso Lawrence v. Texas (inconstitucionalidade de leis criminalizadoras da prática de sodomia): "O tempo pode nos cegar para determinadas verdades, e as gerações futuras podem vir a constatar que leis tidas como próprias e necessárias serviam unicamente para oprimir. Se a Constituição se mantém firme, pessoas de cada geração poderão sempre invocar seus princípios em suas particulares lutas pela liberdade".


MARIA CLAUDIA BUCCHIANERI PINHEIRO , 29, mestra em direito e Estado pela USP, é assessora-chefe da Escola Judiciária Eleitoral do TSE. Foi observadora das eleições norte-americanas pelo International Foundation for Electoral Systems.

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