São Paulo, terça-feira, 30 de março de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O STF e o racismo: o caso Ellwanger
CELSO LAFER
A lei brasileira enquadra, em consonância com a adesão do Brasil às convenções internacionais correspondentes, no crime da prática do racismo o praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional. O primeiro grande tema discutido pelo STF nesse caso foi a análise da questão: anti-semitismo é racismo? A questão foi suscitada no habeas corpus impetrado perante o STF em favor de Ellwanger. Com o objetivo de afastar a imprescritibilidade da pena a que fora condenado, argüiu-se que o crime praticado não era o do racismo, porque os judeus não são uma raça. Com efeito, os judeus não são uma raça. Mas não são igualmente uma raça os brancos, os negros, os mulatos, os índios, os ciganos, os árabes e nenhum outro integrante da espécie humana. Nas palavras da ementa do acórdão, da qual foi relator o ministro Maurício Corrêa, cuja lúcida atuação neste caso foi decisiva: "Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais". Todos os seres humanos, no entanto, podem ser vítimas da prática do racismo. Daí o alcance geral da decisão do STF, explicitada na ementa do acórdão: "A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Deste pressuposto origina-se o racismo, que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista". Disso deflui a orientação fixada pelo STF no caso concreto: anti-semitismo é racismo, e Ellwanger está sujeito às sanções penais contempladas pelo direito brasileiro, pois "a edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o Holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam". O acórdão também esclarece que a ausência de prescrição justifica-se como alerta geral para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. A segunda questão discutida pelo STF versou sobre o tema do eventual conflito entre princípios constitucionais, tendo sido ponderada, no caso concreto, a existência ou não de uma antinomia entre a liberdade de manifestação do pensamento e a condenação de Ellwanger pelo crime da prática do racismo. Esse tema foi amplamente discutido pelo STF, cabendo destacar os votos dos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes. A orientação fixada no acórdão foi a de que a garantia constitucional da liberdade de expressão não é absoluta, tem limites jurídicos e não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações que implicam ilicitude penal. No caso concreto, explicita o acórdão: "O preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica". O STF, por meio dos votos dos ministros Maurício Corrêa, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence, honrou, nesse acórdão, com base no direito, a Justiça no Brasil. Celso Lafer, 62, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro das Relações Exteriores (governos Collor e FHC) e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo FHC). É autor, entre outras obras, de "A Reconstrução dos Direitos Humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt". Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Musa Amer Odeh: Ocupação, a lei da selva Índice |
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