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São Paulo, domingo, 30 de março de 2008

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Cuidado com os pedidos de "cautela"

ROGÉRIO STUDART


Preocupa-me ler em artigos de opinião pedidos de "cautela", sugerindo-se apertar mais ainda a nossa política macroeconômica


O CRESCIMENTO da demanda americana na última década tem sido associado a uma impressionante expansão do endividamento e a uma política tributária claramente regressiva. As inovações financeiras facilitaram e ampliaram essa tendência, porque geraram uma valorização especulativa de ativos, o que, por sua vez, levou a mais acesso a crédito, mais consumo e menos poupança. A dívida das famílias americanas subiu de US$ 7 trilhões em 2000 para US$ 12,8 trilhões em 2007.
Do lado público, o quadro não é muito melhor. As três esferas de governo (União, Estados e municípios) tornaram-se crescentemente deficitárias devido às renúncias fiscais (em favor dos mais ricos), ao crescente rombo previdenciário e à escalada dos gastos militares.
Assim, apesar do crescimento econômico, a participação da dívida pública no PIB cresceu de 35,1% em 2000 para 37,9% em 2007, um salto nominal de US$ 5,7 trilhões para US$ 10 trilhões no mesmo período. As importações líquidas dos Estados Unidos saltaram de US$ 460 bilhões para algo em torno de US$ 722 bilhões entre 2000 e 2007.
Além dos consumidores americanos, os principais beneficiários na economia global foram países exportadores de bens de consumo, commodities e serviços. Não por outra razão, os ativos financeiros americanos nas mãos de estrangeiros (sem contar as reservas internacionais) passaram de US$ 3,5 trilhões em 2000 para cerca de US$ 8 trilhões em 2007.
A outra faceta desse processo, evidentemente, é a vulnerabilidade do crescimento americano a uma reversão do valor dos ativos: por exemplo, se o preço dos imóveis cai, reduz-se a oferta de crédito e, portanto, retrai-se o consumo. Se os títulos públicos, especialmente de Estados e municípios, tiverem uma deterioração na sua classificação de risco (algo que deve ocorrer se as empresas seguradoras desses títulos forem arrastadas pelo mercado de "subprime"), ajustes fiscais terão de ser promovidos. Por fim, se o dólar se desvaloriza ainda mais, reduz-se o déficit comercial americano, mas também a demanda agregada em países emergentes.
Esse ajuste é necessariamente recessivo e pode complicar mais o quadro. Não é por outra razão que o governo americano optou por oferecer um pacote fiscal bilionário (distribuindo cheques diretamente aos contribuintes com maior propensão a consumir), reduzir as taxas de juros e salvar instituições financeiras à beira da bancarrota.
Há, portanto, pelo menos duas "verdades inconvenientes" sobre essa crise: primeiro, ela é mais profunda do que alguns imaginavam até recentemente, já que ocorre no ápice de um processo de acumulação de desequilíbrios nos gastos públicos e privados.
Segundo, parte significativa do milagre econômico americano (e mundial) na última década foi calcado sobre uma demanda insustentável. Sua solução requer não só um ajuste de preços de bens e produtos, mas, principalmente, uma correção de valor de estoques e, creio, do padrão de consumo que tem permeado o desenvolvimento americano e global recente. E, muito provavelmente, não se resolverá em prazos tão curtos como as de 1997 e 2002.
Por isso, me preocupa ler em artigos de opinião pedidos de "cautela", sugerindo-se apertar mais ainda a nossa política macroeconômica.
Por um lado, uma política monetária contrária à tendência internacional aumentaria o diferencial de juros e os influxos de capital -agravando o problema de apreciação do real.
Por outro lado, um aperto fiscal maior no curto prazo dificultaria dar continuidade aos gastos sociais, necessários ao processo de inclusão econômico-social, melhoria do capital humano, além da continuidade da expansão do mercado interno. Também poderia restringir os investimentos em infra-estrutura e logística. Tudo isso geraria danos significativos a nossa competitividade e nosso potencial de crescimento de longo prazo.
No momento em que temos altos níveis de reservas internacionais e que o real está sobrevalorizado, creio que seja pequeno o risco de aceleração inflacionária ou de problemas de balanço de pagamentos.
Sem dúvida, esse risco é muito menor e mais fácil de ser justificado do que estancar um processo de crescimento extremamente saudável. Paradoxalmente, ser cauteloso e previdente neste momento pode requerer ser audacioso e confiante.


ROGÉRIO STUDART , 46, doutor em economia pela Universidade de Londres, professor licenciado da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é diretor-executivo do Banco Mundial para Brasil, Colômbia, Equador, Filipinas, Haiti, Panamá, Suriname e Trinidad e Tobago.


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