São Paulo, segunda-feira, 30 de março de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Em nome do povo?

SAMUEL MAC DOWELL DE FIGUEIREDO


Decidir "em nome do povo", fora dos limites do processo, é sintoma de doença mais grave do que a existência da Daslu em si mesma


N ÃO SENDO advogado criminalista, não domino o sistema de aplicação e dosagem das penas. Quanto a essa questão, guardo tão-somente a noção de que deve ser respeitada a proporcionalidade entre delitos e penas. Ainda assim, nada, a meu ver, justifica ou explica por que pessoas como a sra. Tranchesi e seu irmão, mesmo que culpadas dos crimes dos quais são acusadas, mereçam penas de 94 anos e meio de prisão, que correspondem a uma verdadeira prisão perpétua, em suas idades, ou de morte, nas débeis condições físicas que a primeira parece apresentar. Ao descrever um julgamento ocorrido na Martinica, na sua obra maior, "Tristes Trópicos", Lévi-Strauss manifestou perplexidade ante a ligeireza do julgamento e da gravidade da pena de oito anos de prisão imposta ao negro acusado de um crime banal. No filme "Em Nome do Povo Italiano", de Dino Risi, o juiz de instrução levou a julgamento o industrial mesmo após ter evidências de que ele não era culpado do crime de que era acusado, mas era culpado de crimes não mencionados no processo e que cometera contra a sociedade, enquanto industrial que explorava empregados e não pagava os impostos que devia. São duas visões perturbadoras. Como a rápida condenação a penas severas se compatibiliza com a melhor aplicação do direito, que, naturalmente, associa-se à dúvida, à relutância e à indecisão a que pode levar um conjunto complexo de provas? Como compreender que a sociedade ou um juiz, agindo em seu nome, condene alguém por razões diversas das que fundamentaram a acusação e em relação às quais teve a chance de se defender? Não tenho receio de afirmar que o motivo da pena de 94 anos e seis meses não foi, isoladamente, a prática dos delitos de contrabando, falsidade ideológica e sonegação de impostos, mas resultou da determinação de aplicação de uma pena exemplar ao setor da criminalidade "sofisticada". Ou seja, tratou-se de uma sentença relacionada à criminalidade própria de setores da sociedade que não apenas são ricos mas também produzem sua riqueza pela "delituosidade sofisticada" e ainda acreditam na sua impunidade -uma condenação, então, proferida "em nome do provo brasileiro", como no filme de Dino Risi. Aos motivos dessa condenação poderiam ser acrescentados outros, cuja menção seria inadequada em sentença judicial: o tipo de comércio da Daslu representa, de modo ostensivo, preconceituoso e indiferente à repercussão social, o que há de pior na sociedade brasileira e nos desequilíbrios e diferenças sociais que contém, impõe e mantém. Representa, também, uma exibição acintosa de arrogância e prepotência. E, ao contrário do que muitos pensam em São Paulo, é uma manifestação do mau gosto de setores sociais que podem ser ricos quantas vezes quiserem, mas são dominados por complexos que vêm de sua própria falta de educação e mediocridade. Isso se reflete nas milícias de leões de chácara, nos acessos privativos e, entre outras coisas a lamentar, na arquitetura desses prédios, que enfeiam a cidade para sempre. Esse comércio de "alto luxo" não é praticado em cidades como Nova York, Londres, Paris ou Roma com tal exibicionismo, ostentação e preconceito, sem os quais pode perfeitamente existir e se desenvolver. Com o caráter que expõe em São Paulo, porém, torna-se uma expressão das patologias e dos distúrbios da sociedade, nos quais se realimenta continuamente. Ainda assim, mesmo que a sentença condenatória tenha considerado argumentos e cálculos técnicos, não há, na dosagem da pena de 94 anos e meio, proporcionalidade e pertinência que a sociedade possa reconhecer como legítimas e aceitáveis. Na minha condição leiga de cidadão, e não de advogado, tenho a convicção de que, se forem procedentes as acusações feitas aos donos da Daslu, o que não sei se ocorre, a responsabilização patrimonial, a recuperação do dinheiro público e a prisão por anos que caibam nos dedos das mãos atenderiam, com maior lógica, razoabilidade e aceitação social, a um sentido de proporcionalidade entre o delito e a pena que todos, e não só juízes e advogados, possam compreender. Decidir "em nome do povo", fora dos limites da acusação e do processo, é um sintoma de doença mais grave do que a existência da Daslu em si mesma e dos mecanismos delituosos de que possa se alimentar, se for o caso. Corresponde a entregar poderes ilimitados a quem deve, ao contrário, aplicar a lei e a quem não cabe alinhar-se à polícia ou ao Ministério Público, tendo o dever de exercer o controle dos seus respectivos atos e pretensões judiciais. Assim deve ser não somente nas democracias de padrão ocidental, mas em qualquer nação organizada, mesmo as dominadas por ditaduras. Ignorar esses limites é percorrer um atalho para o fascismo e outras modalidades de Estado sem garantias.

SAMUEL MAC DOWELL DE FIGUEIREDO, 58, é advogado, sócio do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian - Advogados.


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