São Paulo, segunda, 30 de março de 1998

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A dama dança, o fogo pega



É difícil aceitar que ainda se trate essa hecatombe ambiental a que assistimos com tamanha indiferença
JOSÉ SARNEY FILHO
Imagino o Brasil apresentando-se no cenário internacional como uma opulenta e formosa dama, que chega ao grande baile procurando causar impacto. Muito bem maquiada, traja uma imensa saia rodada, na qual se estampam riquezas inigualáveis.
O decote generoso deixa expostas as benesses de que dispõe -juros elevados para aplicações, facilidades fiscais para a instalação de empresas transnacionais etc. Depois de alguns rodopios, ela já sente pesar a bolsa com bilhões de dólares que cavalheiros dos quatro cantos do salão, atenciosamente, lhe oferecem -sem, contudo, se comprometerem com outra dança.
Debaixo da grandiosa saia se esconde a intimidade de um país. Seus jornais divulgam, há algumas semanas, fotos e relatos de um cenário dantesco: milhares de hectares de floresta desmatados e abandonados, outros milhares em chamas. É o extremo norte que arde.
Estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Ambiental, em conjunto com a Universidade Federal do Pará, financiados pelo Banco Mundial com recursos do G-7, revelam que a extração seletiva de madeira abriu corredores na floresta, permitindo o rápido ressecamento da vegetação rasteira e daquela arrancada pelas toras retiradas. Mesmo em outras secas prolongadas, elas não eram assim atingidas, pois estavam à sombra das copas.
Esses corredores, agora cobertos de material altamente inflamável, são também corredores de vento a reavivar as chamas, provavelmente iniciadas pela gente que vive do cultivo da terra e pretendia prepará-la para o plantio. O fenômeno, que vinha sendo chamado de "incêndio verde", por não ser captado nas imagens de satélites, agora parece extravasar seus anteriores limites.
Conforme diversas reportagens, o incentivo à expansão da agricultura de exportação (soja), a abertura de novas concessões para a exploração de recursos minerais e a fixação de populações na Amazônia pelo programa de reforma agrária são também responsáveis pelo atual estado de coisas.
As propostas emergenciais para "apagar" o grande incêndio, basicamente, são: 1) concessão de florestas nacionais para a extração "controlada" de madeira (os resultados só poderão ser comprovados em 30 anos, se o Ibama passar a ter uma estrutura fiscalizatória decente); 2) ranking, a ser divulgado pelo Ibama, das madeireiras infratoras, o que levaria os importadores a não comprar seus produtos, devido a pressões sociais; 3) projetos de reforma agrária ecologicamente corretos, em que os assentados deverão explorar as terras de forma a permitir a sustentabilidade da floresta; 4) monitoramento da geografia da região por aviões, compensando a espera pelo Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), cuja instalação está prevista para 2002.
Todas essas propostas, de efeito a longo e longuíssimo prazos, cujo êxito não está assegurado, não me parecem suficientes. O Brasil não pode pensar, como disse recentemente o ministro Gustavo Krause, que somente a nossa "robusta democracia" irá salvar a Amazônia brasileira.
É preciso que o governo eduque preventivamente e fiscalize de maneira rigorosa o cumprimento da lei, muito embora, infelizmente, tenha sido vetado o artigo da Lei de Crimes Ambientais que punia a adoção do fogo sem controle na atividade agropecuária.
É difícil aceitar que ainda se trate essa hecatombe ambiental a que estamos assistindo com tamanha indiferença -e, pior, subestimando nossa inteligência a ponto de querer nos convencer de que nossos olhos não estão vendo o que de fato vêem.
Parece-me não restar alternativa senão a de supor que a apatia de setores governamentais é resultante de uma situação já esperada por eles. Afinal, optou-se pela ausência total do Estado na economia nacional, que deve necessariamente se submeter ao mercado globalizado, sem nenhuma estratégia.
A dimensão trágica da situação deveria acentuar drasticamente uma política de desenvolvimento baseada na sustentabilidade social e ambiental, que se traduzisse em investimentos concretos e certeiros, como foi o Proer; no fortalecimento das instituições e na intervenção estatal. Sim, pois, do contrário, a inércia, as motosserras e o fogo apagarão irremediavelmente do mapa a abundância da floresta.
O vexame a que estamos sujeitos pode vir a acontecer naquele salão em que o baile corre solto. A horas tantas, surpreendida por um inesperado calor que julga resultar das danças já oferecidas, a dama vê sua saia rodada incendiar-se -sua pomposa saia, que, só ela sabia, ocultava cupins ensandecidos, os quais, como selvagens famintos, disputando a tapa o que lhes proporciona o pão, acabaram por ocasionar as condições para o grande incêndio.
Ainda é possível inverter o quadro? De nossa parte, no que cabe ao Legislativo, temos propiciado os instrumentos legais e fiscalizado as ações do Executivo, oferecendo à sociedade farto material para debate -vide relatórios sobre a biopirataria e as madeireiras asiáticas recentemente divulgados.
A ação constante da Frente Parlamentar Ambientalista, integrada por 156 deputados, denunciando, criticando e buscando soluções para os problemas ambientais, mostra, é certo, que ainda temos muito a fazer.
Mas a resposta concreta à questão acima depende majoritariamente de uma opção política deste governo. Uma outra opção, capaz de deixar a dama bailar tranquila, sem sobressaltos em relação ao que possa revelar ao mundo sua recôndita intimidade.
José Sarney Filho, 41, é deputado federal pelo PFL do Maranhão e coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista para o Desenvolvimento Sustentável.




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