São Paulo, Terça-feira, 30 de Março de 1999
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Um juiz

ARIANO SUASSUNA

Na década de 80, encabeçado por dois generais do nosso Exército -Euler Bentes de Almeida e Antônio Carlos de Andrada Serpa-, lançou-se o manifesto "Em Defesa da Nação Ameaçada". Assinei-o com orgulho e alegria. E assinou-o também, comigo, o professor Fernando Henrique Cardoso.
Passou-se o tempo. Fernando Collor foi eleito presidente e levou adiante, com força maior, o projeto de entrega do nosso país -projeto contra o qual aquele manifesto se pronunciava. Veio o movimento destinado a derrubar Collor, e novamente vi Fernando Henrique Cardoso ao nosso lado. Só depois é que, decepcionados e perplexos, iríamos descobrir que nosso antigo companheiro de luta, filho e sobrinho de generais nacionalistas, queria ver Collor fora do poder, mas não desejava que sua política entreguista fosse abolida. Pelo contrário: quando, por sua vez, chegou à Presidência, ampliou e aprofundou aquela política com uma habilidade e uma eficácia com as quais Collor jamais poderia sequer sonhar.
Além disso, sempre seguindo a linha do governo Collor e dos setores antinacionais do regime militar, Fernando Henrique Cardoso começou a destruir sistematicamente a herança nacionalista e trabalhista de Getúlio Vargas (que, diga-se de passagem, foi expulso do poder pelo que tinha de bom, e não de ruim). De modo que, atualmente, triste e preocupado, vejo que Fernando Henrique Cardoso está conseguindo criar, no Brasil, um ambiente no qual o nacionalismo e até o simples e comum patriotismo foram transformados em objeto de escárnio, em palavras malditas e proibidas.
Para mim, não. Para mim, que sou seguidor do Cristo, e não devoto da sociedade de consumo, "nacionalismo é patriotismo em ato de defender-se"; é uma bandeira que pode e deve ser empunhada enquanto continuar a iníqua exploração dos povos pobres pelos ricos; assim como acontece com o socialismo, enquanto durar, dentro de cada país, a vergonhosa exploração das classes desfavorecidas pelas poderosas.
Entretanto, na semana passada, ouvi, no Recife, um discurso do juiz Ubaldo Ataíde Cavalcante, membro do Tribunal Federal da Quinta Região, discurso que me trouxe esperança e alento. Disse ele que, na situação do Brasil, "não é só a falência de caráter que preocupa. Preocupa, também, a falta de nacionalismo, traduzida no sucateamento das nossas empresas e na exagerada privatização dos serviços públicos essenciais, implicando, mais das vezes, suas respectivas transferências para grandes grupos internacionais e, em consequência, na transferência de parte da nossa soberania nacional. Preocupa a falta de amor ao próximo nos corações de nossos administradores, indiferentes à pobreza e à miséria. Preocupa a insensibilidade, quando se procuram soluções para amenizar as crises que nos atingem sob a ótica exclusivamente econômica".
O discurso vai por aí e só não o transcrevo todo porque não posso. O que sei é que, se fosse o presidente, eu observaria que quem aí fala não é um mero escritor, um demagogo ou um político de oposição: é um juiz, modesto e sereno, mas orgulhoso de sua toga e de sua condição de brasileiro. Por isso eu mandaria buscar o discurso de Ubaldo Cavalcante e o leria cuidadosamente para, fazendo um exame de consciência, decidir qual a imagem minha que eu queria que passasse à história -a atual ou a do patriota que, em outros tempos, assinava o manifesto em defesa do nosso país e do nosso povo.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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