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São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A esquerda que fuzila

DEMÉTRIO MAGNOLI

Os recentes fuzilamentos e condenações sumárias de dissidentes em Cuba chocaram até mesmo alguns dos mais antigos entusiastas do regime de Fidel Castro. O mais célebre entre eles, o escritor comunista José Saramago, publicou um manifesto de ruptura com Cuba e, por mais tardio que seja, o gesto deu uma contribuição de peso para libertar a esquerda da cumplicidade com o desprezo pelos direitos humanos e pelas liberdades políticas. No Brasil, contudo, as principais correntes políticas de esquerda, vergonhosamente, optaram pela cumplicidade.
A excepcional influência política de que hoje desfruta o Brasil deriva da circunstância de ter eleito um presidente de esquerda, que não provém do comunismo ou da social-democracia. Mas o governo Lula tem optado por uma cumplicidade que não é menos vergonhosa pelo fato de ser envergonhada. A abstenção na Comissão de Direitos Humanos da ONU não foi um erro, pois essa comissão jamais se preocupou com direitos humanos: é palco de manobras diplomáticas mesquinhas. Votar contra uma condenação a Cuba na OEA também é correto, por motivos semelhantes. O erro foi a leveza da declaração de voto na ONU, que expressou apenas "preocupação" com os fuzilamentos e condenações sumárias.
Essa declaração está em linha com o silêncio oficial de Lula e com seus comentários informais, que preferem condenar uma suposta "manipulação de informações" contra Cuba a condenar um Estado que fuzila e prende com base em farsas judiciais. José Genoino construiu um argumento pegajoso que identifica os fuzilamentos cubanos à cadeira elétrica americana e, depois, ameniza os primeiros, pois os executados foram "condenados por crime de sequestro". Num repente de saudade de seus tempos de stalinismo, o presidente do PT ocultou, por meio da condenação ao princípio da pena de morte, que a cadeira elétrica americana executa condenados por assassinato, enquanto o pelotão cubano executou sequestradores de uma balsa que não molestaram pessoas e agiram por motivação política.
O PT e o PC do B recusaram-se, naturalmente, a assinar uma nota preparada pelo PFL e vazada em linguagem dos exilados de Miami. Mas, ao contrário do PPS, os dois partidos governistas não produziram nenhuma nota própria condenando as violações de direitos.


Lula, que é amigo pessoal de Fidel, perde a oportunidade de ir a Havana, repudiar os fuzilamentos


Na sua célere marcha rumo ao centro, o comboio do PT deixa cair bagagem à sua esquerda. Essa bagagem se reuniu no jornal "Brasil de Fato", dirigido por líderes do MST e do grupo Consulta Popular. Na sua última edição, esse jornal dá uma chamada de capa para a entrevista de um deputado cubano justificando os fuzilamentos e condenações e, na seção de debates, publica lado a lado um belo artigo de repúdio à repressão, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, e um texto pusilânime de solidariedade a Fidel, de Emir Sader, integrante do conselho político da publicação. A posição do jornal está, é claro, na capa. A fresta aberta a Galeano destina-se a não deixar cair bagagem preciosa, embora mesmo isso seja mais do que fez o PT.
Algumas figuras carimbadas da esquerda brasileira regozijaram-se, fascinadas, diante dos atentados terroristas de 11 de setembro. Essas figuras, e muitas outras, agora batem continência para os fuziladores cubanos. Politicamente primitivos, raciocinam a partir de um silogismo infantil: o apoio aos inimigos do meu inimigo. Não se dão conta de que Bush precisou de Bin Laden para legitimar e sustentar a sua doutrina neo-imperial. Não percebem que o embargo americano e a repressão política cubana se realimentam mutuamente. Eles nem sequer observaram que Cuba "justificou" os fuzilamentos com o discurso emprestado de Bush: os sequestradores eram "terroristas" e os dissidentes ameaçam a "segurança do Estado".
O primitivismo político é apenas a superfície. O novo fascínio pelo terror e o velho fascínio pelo totalitarismo têm raízes fundas, na ruptura da esquerda marxista com a democracia. O divórcio consumou-se pouco depois da tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia e foi denunciado por uma revolucionária marxista, Rosa Luxemburgo. No seu ensaio de 1918 sobre a Revolução Russa está a condenação definitiva do totalitarismo: "Liberdade somente para os partidários do governo, para os membros de um partido, por numerosos que sejam, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente. Não por fanatismo da "justiça", mas porque tudo quanto há de instrutivo, de salutar e purificante na liberdade política se prende a isto e perde sua eficácia quando a "liberdade" se torna um privilégio".
Rosa morreu, Stálin venceu e a esquerda marxista se tornou stalinista. Essa esquerda, apagando os vestígios do seu passado, qualificou a liberdade como "burguesa" e, no poder, ergueu os muros do privilégio. Como hoje se sabe, foi assim que ela desmoralizou a bandeira da igualdade e, no fim, desmoralizou a si própria. Mas não aprendeu nada e continua, pela boca de Genoino ou de Emir Sader, a repetir incansavelmente o monólogo do totalitarismo.
Lula, que é amigo pessoal de Fidel, perde a oportunidade de ir a Havana, repudiar os fuzilamentos e pedir a liberdade para os presos de consciência. De lá, poderia ir a Washington e pedir o fim do embargo a Cuba. Provavelmente não seria atendido por nenhum dos dois presidentes, mas defenderia princípios preciosos e credenciaria a política externa brasileira a representar o papel que ela reivindica na cena mundial. Lula parece preferir a cumplicidade com o totalitarismo. Será lembrado disso na próxima vez que tentar erguer a voz contra a política neo-imperial de Washington.

Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo Geografia e Política Internacional".


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