UOL




São Paulo, quarta-feira, 30 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Fome Zero e crime zero

FREI BETTO e ALI MAZLOUM

Crime não é monopólio de pobre. Pessoas endinheiradas também figuram nas estatísticas da crescente criminalidade que aflige o país. Alguns ingressam no mundo do crime por falta de oportunidades, sobretudo de educação e trabalho. Outros, pelo excesso de oportunidades que a vida lhes oferece. De um lado, a pobreza; de outro, a ganância. A miséria, no entanto, tem sido a grande responsável pela fácil cooptação de nossas crianças e jovens por associações criminosas.
A ciência criminal sempre esteve às voltas com essa intrincada questão: como submeter o criminoso a uma punição que corresponda, em gravidade, ao dano por ele causado?
Há quem acredite que a prisão é a universal panacéia para todos os males. Constata-se, porém, que a segregação nem sempre cumpre sua finalidade social. Em tese, a prisão deveria evitar novas práticas delitivas, intimidando o infrator e a sociedade e recuperando aquele que transgrediu a lei. Devido à falência de nosso sistema prisional, somada à enorme desigualdade social (os 10% mais abastados são 70 vezes mais ricos que os 10% mais pobres), a dupla função da pena é meramente teórica.
O direito penal moderno defende a segregação do infrator apenas em situações de extrema gravidade. Pesquisas criminológicas demonstram que a privação da liberdade não recupera necessariamente o criminoso. A aplicação de penas alternativas tem surtido melhores efeitos. Na legislação brasileira, entre as penas restritivas de direitos, previstas no artigo 43 do Código Penal, destaca-se a prestação pecuniária.
Penas alternativas também desempenham funções retributiva e preventiva de uma reprimenda penal. E podem ser utilizadas como meios para cumprir exigências constitucionais, como a erradicação da pobreza e da marginalização (art.3º, inciso III, da Constituição Federal). Portanto compete aos poderes constituídos a adoção de políticas públicas afinadas com esse primado constitucional.
Penas restritivas de direitos, em especial a prestação pecuniária, devem ser adotadas para ressocializar o infrator e, ao mesmo tempo, combater a pobreza. Essa alternativa, adotada nos últimos três meses pela 7ª Vara Criminal de São Paulo, demonstra que, no país, pelo menos R$ 100 milhões podem ser arrecadados por ano para o combate à fome.


Penas restritivas de direitos, em especial a prestação pecuniária, devem ser adotadas para combater a pobreza

Esse mecanismo poderia ser instituído, por via legislativa ordinária, para crimes de menor poder ofensivo, tornando obrigatória a sua aplicação em todos os municípios brasileiros. Hoje, para "crimes de pequena gravidade" cuja pena máxima não ultrapasse um ano, o Ministério Público, de acordo com o art. 76 da lei 9.099/95, propõe a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas. Caso aceita a proposta pelo acusado, o juiz aplica a pena restritiva cabível. Assim, o processo não é iniciado.
Para "crimes de gravidade média" cuja pena mínima não seja inferior a um ano, a mesma lei estabelece, em seu artigo 89, a possibilidade de suspensão do processo por dois a quatro anos, mediante certas condições. Verifica-se que, para delitos mais leves, aplica-se pena restritiva de direitos (art. 76); para delitos mais graves, são mais brandas as condições de suspensão do processo (art. 89).
Para acabar com a incoerência da lei e dispensar um tratamento mais adequado à natureza dos delitos em questão, propomos a alteração do inciso II do artigo 89 -"proibição de frequentar determinados lugares" (inócua, por falta de fiscalização)-, cuja redação seria: prestação pecuniária, consistente em pagamento em dinheiro, a ser fixada pelo juiz, não inferior a um salário mínimo, nem superior a 500 salários mínimos, ao Fundo de Erradicação da Pobreza.
É bom lembrar que o combate à criminalidade e à fome é dever imposto aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Um trabalho efetivo depende, no entanto, do apoio de toda a sociedade. Cada qual fazendo a sua parte.

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 58, frade dominicano e escritor, é assessor especial da Presidência da República e coordenador do setor de Mobilização Social do Programa Fome Zero. É autor de "Hotel Brasil" (Ática), entre outros livros. Ali Mazloum, 43, especialista em direito penal pela UnB, é juiz federal da 7ª Vara Criminal de São Paulo e professor de direito constitucional nas Faculdades Integradas de Guarulhos.


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: José Erivalder Guimarães de Oliveira: A CPI dos Planos de Saúde

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.