São Paulo, sexta-feira, 30 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Informação enganosa e remédios suspeitos

ANTONIO CARLOS ZANINI

Na política e no comércio, a informação enganosa aprimorou-se mais do que a informação técnica. A saúde pública não foi exceção: os políticos descobriram, por exemplo, que a vigilância sanitária não precisa "ser séria", basta "parecer séria". E alguns, que se diziam sanitaristas, mostraram ser apenas políticos...
Até que a Operação Vampiro fosse desencadeada pela Polícia Federal, os "homens da saúde pública" ostentavam auréolas de santos; alguns roubaram à vontade, aproveitando o seu bom conceito para obter apoio do Ministério Público e do Judiciário. Adaptaram a "lei do silêncio", das favelas, ao governo. Por coincidência, funcionários do Poder Executivo iniciaram processos criminais de difamação contra os que denunciaram irregularidades na saúde pública, mesmo sem fundamento e sem provas. Em São Paulo, orientados pela Secretaria de Saúde, procuradores do Estado abriram processo até mesmo contra pacientes renais crônicos.


Sob "sigilo", não é difícil manusear a verdade científica; a indústria pode esconder defeitos e exagerar qualidades


A Polícia Federal traz novo ânimo para que a banda podre da saúde pública seja investigada, especialmente na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e nos Estados. Enquanto "sanitaristas" se tornam truculentos, a polícia cuida da saúde do povo.
A indústria farmacêutica tem sido responsabilizada por esconder defeitos e exagerar qualidades, mas os culpados podem ser os governantes que permitem essas artimanhas, que colocam em risco a saúde dos pacientes. É o que parece estar acontecendo no Brasil com alguns medicamentos novos e com genéricos importados.
A ética em pesquisa obriga os pesquisadores a publicar seus resultados, inclusive os desfavoráveis, para coibir a manipulação de dados científicos. No Brasil, está em vigor desde 1996 uma resolução do Conselho Nacional de Saúde segundo a qual é antiético o "sigilo sobre resultado de pesquisa científica". Mas a Anvisa esconde as pesquisas que dão base ao registro de medicamentos. A situação é tão descarada que esse órgão divulgou pela internet que "as avaliações sobre eficácia e segurança do produto, incluindo estudos pré-clínicos e clínicos", são protegidas por "sigilo legal". Com esse escudo do sigilo legal, torna-se fácil a dirigentes cometer irregularidades técnicas e ficar imunes a crimes previstos no Código de Defesa do Consumidor.
Há provas de que a Anvisa impediu vista de dados científicos de uma ciclosporina genérica cujos resultados mostravam que não era equivalente ao remédio de referência quando administrada após a ingestão de alimentos. O próprio produtor confessa isso no seu país de origem, mas no Brasil esse fato foi ignorado. Por coincidência, esse produto, cuja absorção é diminuída pela alimentação, obteve o registro uma semana antes de ganhar uma licitação, em São Paulo, da ordem de US$ 11 milhões.
Por trás dos sigilos está o comércio dos genéricos sem qualidade. O governo brasileiro permite a importação de medicamentos genéricos sem testes no Brasil e não se tem notícia de controle de qualidade (bioequivalência) após o seu registro na Anvisa. Os médicos, com razão, foram perdendo a confiança no genérico brasileiro. Após quatro anos de introdução dos genéricos, seu receituário é baixíssimo, inferior a 5%. Há ainda suspeita de que resultados negativos dos testes de bioequivalência não são divulgados, pois os testes são contratados pelos interessados. Esses problemas acabam por prejudicar indústrias idôneas.
Informação correta é indispensável para qualquer medicamento, tão importante quanto a qualidade do produto. Para obter um novo remédio são necessários anos de pesquisa, tudo visando saber as características desse produto, mas a realidade é que essa pesquisa tem que ser paga com muito lucro.
Sob "sigilo", não é difícil manusear a verdade científica; a indústria pode esconder defeitos e exagerar qualidades. Para países exportadores é economicamente conveniente o registro de medicamentos com base em "pesquisas" confidenciais. A Anvisa ajuda os países exportadores, mas não segue a ética exigida no Brasil. A agência, que domina mais de 35% do PIB do país, consegue ter um modelo em que, dentro da legalidade, grupos de industriais podem trocar resoluções por contribuições a campanhas políticas. Para isso, o "inteligente" esquema administrativo (concentração de poder no dirigente e instabilidade no emprego dos subalternos) foi aliado ao sigilo legal.
É hora de a polícia investigar a vigilância sanitária -registros de medicamentos e ações de fiscais-, pois, no Brasil, essa "santa atividade" não tem nenhuma auditoria. A atual estrutura administrativa da vigilância sanitária do Brasil é criticada por peritos internacionais, pois favorece e estimula a corrupção.

Antonio Carlos Zanini, 65, é diretor do Centro de Estudos de Farmacoeconomia na Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia de Medicina de São Paulo. Foi Secretário Nacional de Vigilância Sanitária (1980-85).


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