|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
O aborto deve ser descriminalizado?
SIM
Criminosa ou vítima?
ANÍBAL FAÚNDES
O aborto é um problema grave
tanto do ponto de vista da saúde
pública como do ponto de vista da mulher. Por isso mesmo, com raras exceções, a maioria das pessoas é contra tal
prática, incluindo a maior parte das que
abortam. A conclusão lógica é que é
preciso fazer todo o esforço possível para que nenhuma mulher tenha que passar por essa difícil experiência.
Ao que parece, parte substancial dos
legisladores brasileiros ainda acredita
que a intervenção que pode resolver o
problema é a condenação da mulher
que aborta. Infelizmente, essa intervenção tem-se mostrado altamente ineficaz. Mais de 1 milhão de mulheres continuam abortando a cada ano no Brasil
-de cada 1.000 mulheres em idade fértil, entre 30 e 35 abortam anualmente.
Muitos ficam surpresos ao saber que
os países com as menores taxas de aborto são aqueles nos quais o aborto é legal
e de fácil acesso. Na Holanda e na Alemanha, por exemplo, em cada grupo de
1.000 mulheres entre 10 e 49 anos de idade, de seis a oito abortam anualmente.
Isso mostra que a maior ou menor liberalidade das leis não é o fator determinante para que as mulheres façam ou
não um aborto.
O que a experiência desses países ensina é que, para conseguir baixas taxas de
aborto, é preciso reunir outras condições que permitam às mulheres engravidar apenas quando desejarem. Isso
significa: educação em sexualidade desde a infância e maior igualdade de poder entre mulheres e homens, além de
amplo conhecimento e acesso a todos
os métodos eficazes de contracepção.
Além disso, é preciso oferecer proteção
social e econômica às mulheres que desejam ter um filho.
No Brasil, a educação em sexualidade
permanece um tabu, e o acesso a métodos anticoncepcionais eficazes continua
problemático para as mulheres mais
pobres, aqui incluído o grande número
de adolescentes que engravidam a cada
ano. Os homens se atribuem plenos direitos sobre o corpo da mulher, e ela não
consegue controlar quando ou em que
condições manter relações sexuais.
Tudo isso leva a gravidezes não desejadas e, conseqüentemente, ao aborto.
Por outra parte, há mulheres que gostariam de ter um filho, mas são ameaçadas de demissão no trabalho ou constrangidas de outras formas, quando não
abandonadas pelo marido ou companheiro. São fatores que as levam ao
aborto como forma de se adaptarem à
sociedade em que vivem.
Continuar considerando criminosa
toda mulher que aborta não seria tão
grave se não fosse isso, além de ineficaz,
injusto e perigoso. Injusto com as mulheres que dependem dos serviços públicos de saúde, em que tal atendimento
é interdito. As mulheres de maior poder
aquisitivo têm acesso fácil a clínicas que
fazem abortos seguros e jamais são acusadas ou condenadas. E perigoso porque, quanto mais pobre a mulher,
maior risco oferece o aborto: são cotidianos os casos que deixam seqüelas
graves (quando não levam à morte).
Estudos em diferentes regiões do país
mostram que entre 13% e 50% das mortes causadas por gravidez são conseqüências de abortos feitos em condições
de risco. As mortes dessas mulheres têm
também graves conseqüências para a
saúde física e social dos filhos que deixam órfãos. Tudo isso tem, claro, um
enorme custo social e econômico.
A maioria das pessoas que viveram a
experiência de uma gravidez não desejada termina aceitando que, nesse caso
absolutamente excepcional, o aborto é
moralmente aceitável. Essa foi, por
exemplo, a resposta de 79% dos ginecologistas questionados em pesquisa recente. Para cada mulher que faz aborto
a sua situação é também "absolutamente excepcional". Elas abortam apesar de
continuarem sendo contra a prática.
Pessoas razoáveis têm diferentes crenças e opiniões sobre o que está bem e o
que está mal neste assunto. Em conseqüência, a aceitação de um certo pluralismo é um requisito das sociedades democráticas. Esse pluralismo não se contrapõe à liberdade de os indivíduos fazerem valer suas próprias concepções
de moralidade em seus atos pessoais,
mas lhes permite aceitar que, dentro de
limites razoáveis, outras pessoas possam também agir de acordo com suas
próprias idéias.
Aplicando esse conceito ao problema
que nos ocupa, acreditamos que se pode
chegar a um consenso básico com respeito ao aborto: 1) ninguém gosta de
abortar nem gosta que outras pessoas
abortem; 2) há muitos abortos evitáveis;
3) o aborto inseguro é um grande problema de saúde pública; 4) criminalizar
o aborto não é solução para o problema.
Acreditamos que é possível ampliar
esse consenso e utilizá-lo para regulamentar o aborto, sempre com uma atitude de respeito aos diferentes valores
de cada pessoa.
Aníbal Faúndes, 74, professor titular de obstetrícia da Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas), é presidente do Comitê de Direitos
Sexuais e Reprodutivos da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia. É autor do livro
"O Drama do Aborto".
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Alice Teixeira Ferreira: A origem da vida do ser humano e o aborto
Índice
|