São Paulo, sábado, 30 de julho de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O aborto deve ser descriminalizado?

SIM

Criminosa ou vítima?

ANÍBAL FAÚNDES

O aborto é um problema grave tanto do ponto de vista da saúde pública como do ponto de vista da mulher. Por isso mesmo, com raras exceções, a maioria das pessoas é contra tal prática, incluindo a maior parte das que abortam. A conclusão lógica é que é preciso fazer todo o esforço possível para que nenhuma mulher tenha que passar por essa difícil experiência.
Ao que parece, parte substancial dos legisladores brasileiros ainda acredita que a intervenção que pode resolver o problema é a condenação da mulher que aborta. Infelizmente, essa intervenção tem-se mostrado altamente ineficaz. Mais de 1 milhão de mulheres continuam abortando a cada ano no Brasil -de cada 1.000 mulheres em idade fértil, entre 30 e 35 abortam anualmente.
Muitos ficam surpresos ao saber que os países com as menores taxas de aborto são aqueles nos quais o aborto é legal e de fácil acesso. Na Holanda e na Alemanha, por exemplo, em cada grupo de 1.000 mulheres entre 10 e 49 anos de idade, de seis a oito abortam anualmente. Isso mostra que a maior ou menor liberalidade das leis não é o fator determinante para que as mulheres façam ou não um aborto.
O que a experiência desses países ensina é que, para conseguir baixas taxas de aborto, é preciso reunir outras condições que permitam às mulheres engravidar apenas quando desejarem. Isso significa: educação em sexualidade desde a infância e maior igualdade de poder entre mulheres e homens, além de amplo conhecimento e acesso a todos os métodos eficazes de contracepção. Além disso, é preciso oferecer proteção social e econômica às mulheres que desejam ter um filho.
No Brasil, a educação em sexualidade permanece um tabu, e o acesso a métodos anticoncepcionais eficazes continua problemático para as mulheres mais pobres, aqui incluído o grande número de adolescentes que engravidam a cada ano. Os homens se atribuem plenos direitos sobre o corpo da mulher, e ela não consegue controlar quando ou em que condições manter relações sexuais.
Tudo isso leva a gravidezes não desejadas e, conseqüentemente, ao aborto. Por outra parte, há mulheres que gostariam de ter um filho, mas são ameaçadas de demissão no trabalho ou constrangidas de outras formas, quando não abandonadas pelo marido ou companheiro. São fatores que as levam ao aborto como forma de se adaptarem à sociedade em que vivem.
Continuar considerando criminosa toda mulher que aborta não seria tão grave se não fosse isso, além de ineficaz, injusto e perigoso. Injusto com as mulheres que dependem dos serviços públicos de saúde, em que tal atendimento é interdito. As mulheres de maior poder aquisitivo têm acesso fácil a clínicas que fazem abortos seguros e jamais são acusadas ou condenadas. E perigoso porque, quanto mais pobre a mulher, maior risco oferece o aborto: são cotidianos os casos que deixam seqüelas graves (quando não levam à morte).
Estudos em diferentes regiões do país mostram que entre 13% e 50% das mortes causadas por gravidez são conseqüências de abortos feitos em condições de risco. As mortes dessas mulheres têm também graves conseqüências para a saúde física e social dos filhos que deixam órfãos. Tudo isso tem, claro, um enorme custo social e econômico.
A maioria das pessoas que viveram a experiência de uma gravidez não desejada termina aceitando que, nesse caso absolutamente excepcional, o aborto é moralmente aceitável. Essa foi, por exemplo, a resposta de 79% dos ginecologistas questionados em pesquisa recente. Para cada mulher que faz aborto a sua situação é também "absolutamente excepcional". Elas abortam apesar de continuarem sendo contra a prática.
Pessoas razoáveis têm diferentes crenças e opiniões sobre o que está bem e o que está mal neste assunto. Em conseqüência, a aceitação de um certo pluralismo é um requisito das sociedades democráticas. Esse pluralismo não se contrapõe à liberdade de os indivíduos fazerem valer suas próprias concepções de moralidade em seus atos pessoais, mas lhes permite aceitar que, dentro de limites razoáveis, outras pessoas possam também agir de acordo com suas próprias idéias.
Aplicando esse conceito ao problema que nos ocupa, acreditamos que se pode chegar a um consenso básico com respeito ao aborto: 1) ninguém gosta de abortar nem gosta que outras pessoas abortem; 2) há muitos abortos evitáveis; 3) o aborto inseguro é um grande problema de saúde pública; 4) criminalizar o aborto não é solução para o problema.
Acreditamos que é possível ampliar esse consenso e utilizá-lo para regulamentar o aborto, sempre com uma atitude de respeito aos diferentes valores de cada pessoa.


Aníbal Faúndes, 74, professor titular de obstetrícia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é presidente do Comitê de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia. É autor do livro "O Drama do Aborto".


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