São Paulo, terça-feira, 30 de agosto de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Suécia tropical

A ilusão que domina o discurso político brasileiro é supor que o objetivo de nossos esforços deva ser fundar no Brasil uma Suécia tropical. Nada tem a ver com a Suécia real ou com o Brasil real; só com uma idéia falsa de ambos. Enquanto continuarmos a perseguir essa miragem, não construiremos o país.
Descrever essa ilusão é resumir em um parágrafo a quase totalidade das idéias programáticas em evidência no Brasil. O binômio perverso -juros altos, câmbio baixo- deve ser substituído pelo binômio virtuoso -juros baixos, câmbio alto. A condição para isso é reduzir drasticamente o gasto público, sem deixar de pagar os juros da dívida pública. Essa mudança deve ser combinada com reforma tributária que extraia renda dos endinheirados para financiar política social compensatória, dirigida aos brasileiros mais pobres. Afora isso, basta educar o povo e melhorar a eficiência do governo. O mercado e o social produzirão juntos a Suécia tropical.
Tudo nesse projeto é enganoso. Não é possível passar de juros altos e câmbio baixo para o oposto por meio da simples redução abrupta da despesa pública. A nação recusar-se-á a trabalhar, sem ter governo que invista nela, só para enriquecer os rentistas, os credores da dívida pública. A única maneira realista de executar a transição é tensionar com os mercados financeiros (evitando ao máximo ruptura dos contratos), preparar-se para controlar movimentos de capital quando for necessário controlá-los e organizar bases de crescimento econômico socialmente includente que não dependam da confiança financeira. Uma dessas bases é a mobilização da poupança de longo prazo para o investimento de longo, graças a reformas e inovações no mercado de capitais. Outra base é o aprofundamento do mercado interno, calcado na valorização e na qualificação dos assalariados por meio de iniciativas que não ameacem a estabilidade da moeda. E que acabem com o predomínio do trabalho sem carteira assinada. Entre tais iniciativas figuram participação dos assalariados nos lucros das empresas, incentivos tributários ao emprego e à qualificação dos trabalhadores mais pobres e abolição de todos encargos sobre a folha de salários.
Não é possível promover redistribuição de renda usando o sistema tributário e o gasto social focado nos mais pobres para anular os efeitos de desigualdades gigantescas de acesso às oportunidades econômicas e educativas. As transferências compensatórias teriam que ser maciças para serem eficazes. Nunca chegariam lá. A maneira de chegar lá é democratizar radicalmente oportunidades econômicas e educativas. Usar os poderes e os recursos do Estado para instrumentalizar o empreendedorismo que emerge de baixo na sociedade brasileira. E para oferecer a todos ensino público de qualidade. Ensino capaz de atrair a classe média à escola pública, em proveito de todos.
Vivo angustiado com o seguinte problema. Não há no pensamento brasileiro alternativa clara ao devaneio da Suécia tropical, que fascina os social democratas e os social liberais brasileiros: proposta de rumo pronta para ser traduzida em projeto de poder. Daí a necessidade de fazer o caminho inverso. Entrar na luta pelo poder. Apelar para a intuição do povo brasileiro: seu instinto de sobrevivência e sua vontade de afirmação. E organizar o ideário no curso da construção coletiva de outro futuro.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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